Santo Antônio sem cabeça
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 27 de Agosto de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Houve um tempo em que pensei que o turismo religioso fosse uma heresia, uma intervenção pouco recomendada do mundano sobre o sagrado. Achava que essa atividade poderia tirar a naturalidade das romarias, colocando negócio, política e fé na mesma arena. Ter duvidado foi muito bom para temperar a minha compreensão de que os santuários sempre foram e são um misto de culto, comércio e comício.
Ao devoto interessa ter um lugar especial reservado para a relação com o santo. Isso, no caso das romarias, não quer dizer ficar egoistamente sozinho com a divindade. Nas romarias a retração faz parte de um fenômeno alegórico de acolhimento multitudinário.
No Ceará, em Juazeiro do Norte, por atração do Padre Cícero, e em Canindé, por encanto de São Francisco, temos dois espetaculares centros de peregrinações. Ambos são destinos de visitações permanentes, movidos por ícones hagiográficos, com suas histórias próprias e marcantes.
O turismo religioso cearense tem particularidades que o diferem no conceito, ao mesmo tempo em que o nivelam em potencial, às peregrinações a Aparecida do Norte em São Paulo, ao Círio de Nazaré em Belém, e aos destinos mais consagrados internacionalmente, como Santiago de Compostela na Espanha, Fátima em Portugal, Lourdes na França e Assis na Itália.
Com a necessidade de diversificação e estruturação de atrações em um lugar vocacionado para o turismo como o Ceará, o governo do Estado está investindo no desenvolvendo do projeto “Caminhos de Assis”, um roteiro de turismo religioso, com aspectos ecológicos e culturais, que liga Fortaleza a Canindé, passando por Maranguape e Caridade.
Quando soube desse projeto, a primeira coisa que me veio à mente foi a música “Estrada de Canindé”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira: “Ai, ai que bom / que bom que bom que é / uma estrada e a lua branca / no sertão de Canindé”. Essa composição antológica fala da satisfação de ver nas estradas o orvalho beijando a flor, de ver e ouvir de perto o galo campina, de molhar os pés na água fresca dos riachos, de coisas que só acredita quem se dispõe a andar a pé. Isso significa para mim que a ação do turismo permite a integração de peregrinos e turistas pelo elo comum que os une, que é a cultura.
Bem que o projeto poderia ser chamado “Estrada de Canindé”. Se não estrada, pelo menos “Caminhos de Canindé”. Assis é a terra natal de São Francisco, na Itália, onde se realiza sua maior peregrinação. Em Canindé, acontece a segunda maior romaria desse santo, irmão dos animais e protetor do meio ambiente. Imagino que o fato de existir Canindé de São Francisco não seja um impeditivo para o uso do nome Canindé, pois a cidade sergipana tem como principal atração turística o canyon navegável criado pela usina hidroelétrica de Xingó.
Cada santuário tem os seus motivos de atração e as suas especificidades de ofertas. O conceito de turismo religioso envolve cultura e economia. A estética da religiosidade popular cabe perfeitamente em camisetas de Iemanjá, Padre Cícero, São Jorge, Chico Xavier e Nossa Senhora Aparecida, ao lado de Lampião, de ex-votos e dos temas da literatura de cordel. Vejo esse lado da questão como se Andy Warhol (1928 – 1987) baixasse no sertão para um cruzamento da sua art pop com a arte popular.
Seria curioso para quem visitasse Caridade, encontrar por ali algo como camisetas com a imagem da cabeça de Santo Antônio na frente e a reprodução do corpo na parte das costas. Mas esse tipo de criação só terá sentido se os idealizadores do projeto “Caminhos de Assis” entenderem a importância de manter a cabeça do Santo Antônio de Caridade no lugar onde ela está há cerca de duas décadas. Ou seja, no meio da rua e não no corpo da estátua do santo, que fica no alto do serrote, compondo, juntamente com a igreja matriz, o agradável cenário da pequena cidade.
Seja qual tenha sido o motivo da estátua não ter sido concluída, o Santo Antônio sem cabeça é um ex-voto gigante, não no sentido da promessa realizada, mas na sua dimensão estética. O investimento nesse circuito de turismo religioso pode ter em Caridade apenas uma parada rápida ou um ponto de visitação demorada. Tudo vai depender do conceito que for trabalhado com o local.
A cultura popular adotou a imagem de casamenteiro para Santo Antônio. E dentro das simpatias que envolvem essa fantasia, a figura da cabeça longe do corpo tem presença destacada. Por essa razão, maximizar a situação exótica do caso de Caridade libera para o presente uma narrativa que vem do passado e se projeta para o futuro, como atração religiosa e cultural.
As simpatias do padroeiro dos namorados estão, dentre outras, atreladas a amarrar o santo de cabeça para baixo na cabeceira da cama, colocá-lo mergulhado em copo d´água e arrancar a cabeça e só colar de volta em caso de conseguir marido. Ah, como seria bom se antes de colocar a cabeça do santo no corpo de cimento que está no alto do serrote, a Secretaria de Turismo fizesse uma pesquisa acurada do que se passou em Caridade nas últimas décadas por conta da cidade ter um santo sem cabeça.
A capacidade de novelização da nossa gente certamente já produziu diversos causos com essa história do santo sem cabeça. Essa criação, que deve vagar solta pelas ruas da cidade, precisa ser levantada, valorizada, estudada e espalhada para virar desafio de violeiro, literatura de cordel, peça de santeiro e tema de bordadeira. A clareza do que pode significar a existência de um santo sem cabeça em suas vidas, pode reforçar nos moradores de Caridade o sentido mais coeso e afetivo de comunidade.
Acredito que tendo a chance de falar, de contar e de depois ouvir a própria voz, a alma cultural dos habitantes de Caridade darão mais importância ao que construiram no cotidiano de convivência com o Santo Antônio sem cabeça, do que à lógica do lugar-comum. Da mesma maneira que a ginástica artística ainda hoje sofre com as interpretações baseadas no balé clássico, é normal que, sem a oportunidade de se deixar reconhecer na próprias histórias, as pessoas queiram que sua estátua seja igual as outras que existem no mundo.
A materialização das diversas fontes de crenças e causos fragmentadas e espalhadas em torno do Santo Antônio da Caridade apontariam para o desenvolvimento de um turismo com estilo. Quando falo de crenças e causos, estou falando do vínculo de devoção e atração cultural, da liga entre procissão e cortejo, de impulso à recriação da tradição, seus festejos e celebrações. Falo de tradição, no sentido original da palavra, no sentido de trazer, de mover algo para outro lugar.
Tudo é uma questão de orientação, de condução, de angulação. O projeto “Caminhos de Assis”, que poderia ser, repito, “Estrada de Canindé” ou “Caminhos de Canindé” tem tudo para ser realmente especial, desde que nos lembremos que são essencialmente urbanos os peregrinos desse percurso de turismo religioso e, como tal, desejam mais do que rezar em sua caminhada.
Está também mais do que na hora de Maranguape criar o festival “Luar do Sertão” para elevar a sua qualidade como destino turístico. Afinal, foi em recordação à serra de Maraguape que Catulo da Paixão Cearense (1863 – 1946) compôs uma das mais emblemáticas músicas do nosso cancioneiro popular. Por enquanto, tem o Museu da Cachaça, a casa de Chico Anysio, o mérito de ser a terra de Capistrano de Abreu e de contar com mais de uma dezena de santos padroeiros em seus distritos. Somando-se a tudo isso o Santo Antônio sem cabeça de Caridade, vai dar gosto fazer os “Caminhos de Canindé”.