São João em Maracanaú
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 21 de Junho de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Andei por um bom tempo meio desencantado com a descaracterização provocada pelos exageros dos figurinos, dos passos das danças e dos autos das quadrilhas juninas e com a homogeneidade e o empobrecimento artístico dos shows incorporados às festas de São João. Isso vinha me inquietando porque sei da importância desses eventos para a cearensidade e do tanto que eles têm de alma nordestina e de potencial turístico.
As festas juninas estão direta ou indiretamente entre os traços culturais mais presentes no Ceará. Constituídas e organizadas simbolicamente como decorrência do nosso sistema de relações sociais, formatado a partir da influência histórica da colonização, modificaram-se ao longo dos anos e continuam em franco processo de alteração, enquanto festejos oscilantes entre manifestação popular espontânea e produto da cultura de massa.
Resolvi tomar pé de como se dá uma grande festa junina atualmente e, sábado passado (16), fui ver de perto a de Maracanaú, cidade da região metropolitana de Fortaleza, considerada a Capital Junina do Ceará. Adianto que fiquei positivamente impressionado com a estrutura de aproximadamente quatro hectares, circundada por tapumes de madeira e divida em três ambientes: quadrilhódromo, praça de shows e uma cidade cenográfica em homenagem ao centenário de Luiz Gonzaga. Tudo bem organizado pela municipalidade, com entrada gratuita e bem-estar de segurança.
A concepção de três ambientes em um só espaço destaca-se por sua configuração integrada do sentido atual das festas juninas, dando novos significados a uma diversão antes orientada principalmente por intenções pastorais. O deslocamento do cunho religioso para o cultural estava coloridamente caracterizado na cidade cenográfica, onde a representação da capela apresentava a mesma distinção do xilindró, da radiadora, do engenho moendo cana e do cabaré da luz vermelha.
A presença desses elementos tradicionalizados na vida interiorana, conjugados e conjurados na mesma área, abre diversas possibilidades de conotações, analogias e permutações porque se resumem apenas a um ordenamento festivo e não a qualquer prescrição social. A simples combinação de réplicas abre passagem para validades particulares e suas compreensões relativas, muitas vezes guardadas no íntimo de cada pessoa como algo apagado de sua cultura.
Convém lembrar que Maracanaú é uma cidade industrial habitada praticamente por desterrados. Para seus moradores, aquele espaço público deve reacender uma via de identificação cultural profunda, elevada pelo sentimento atávico de quermesse, misturado em fantasias de clubes e de praças de igreja e de mercado. Nessas festas de São João, que a cidade realiza há oito anos, as pessoas têm a oportunidade de receber, por quase um mês, centenas de visitantes, provenientes de municípios vizinhos, além dos integrantes dos cerca de oitenta grupos de quadrilha que se deslocam para lá em busca de diversão e dos títulos dos festivais que acontecem no quadrilhódromo.
Tenho consciência de que as festas juninas, como toda invenção social coletiva, precisam mesmo ser repensadas a partir das mudanças ocorridas na sociedade e, por conseguinte, no nosso olhar sobre a cultura. Na dinâmica da vida urbana talvez seja de pouca razoabilidade querer um folguedo nos moldes dos mais isolados recantos do mundo rural. O que me embaraça o a mente quando fico matutando sobre isso é a sensação de carência de estímulo ao prazer da apreciação, acentuada especialmente na praça de shows. Minha expectativa é que o encontro e a dispersão que essas festas produzem, estiquem o alfenim da sabedoria popular até libertar a sua consistência e o seu sabor mais puro de melado com goma.
O que me pareceu mais relevante na ida ao São João em Maracanaú com a minha família foi não ficar preso ao claro e escuro, até porque no fundo, no fundo, o preto e o branco são policromáticos. Procurei fazer o exercício de dar prioridade aos fatos na minha experiência perceptual. Transitamos descontraídos na plasticidade da cidade cenográfica, do quadrilhódromo e da praça de shows, entre bandeirolas e balões no efeito recíproco de saturação e brilho das cores estouradas da decoração, sem cobrar o que poderia ser claridade e escuridão.
No percurso evolutivo das festas juninas, muitos altos e baixos já foram deixados para trás. O mais importante de tudo é que a essência dessa tradição ainda não desapareceu; o que era não é mais, contudo, segue com vigor em busca de renovação e sentido. A estética das quadrilhas perdeu as nuanças intuitivas da cultura popular e, salvo exceções, se perdeu na distração de um público difuso, aparentemente conformado com suas necessidades de escape da rotina e dependente da relação direta do mercado com as massas.
Qualquer dia desses, quando o Brasil e o Ceará perceberem que não dá para se desenvolverem de verdade sem um ministério da cultura e sem uma secretaria de cultura pra valer, certamente esse tipo de manifestação ganhará os cuidados devidos. Não defendo com isso que se gaste o menor tempo sendo contra o que está estabelecido. Assim como em alguns bairros e povoados as pessoas continuam fazendo festa junina orgânica para o viver comunitário e o comércio de shows domina as arenas de bandas, espera-se que um dia os governos venham a dar apoio sistemático ao que faz a diferença em qualidade e liberdade criativa.
A festa de Maracanaú é uma síntese bem estruturada do que somos na atualidade em termos de considerações à cultura. A estrutura “três em um” desse evento mostra-se valiosa por permitir a distinção do que há de músculo nos grupos de quadrilha, de voz nos animadores de palco, e de semblante no campo social coletivo da cidade cenográfica, criando as condições de despertar nas pessoas o que elas ainda podem ser, enquanto parte dessa manifestação viva do nosso calendário cultural (e que deveria ser turístico também).
Em que pese a beleza das nossas praias, não há melhor forma de dar sustentação ao turismo do que pelas revelações das nossas práticas culturais. Se o que temos ainda não está totalmente pronto, a pressão da difusão ajuda a melhorar. Neste aspecto, as quadrilhas juninas fazem parte do nosso acervo simbólico, tanto no tocante à sua expressão social quanto em relação à economia que movimenta, a tecnologia utilizada, as linguagens a que recorre e os conceitos que traduz.
Infelizmente temos tradicionalmente um turismo com ideia limitada de cultura e, por isso mesmo, pobre em ofertas culturais. É provável que a falta de atenção às festas juninas encontre justificativa na ideia de que esse tipo de evento existe em outros estados nordestinos, portanto, não haveria muita razão para um visitante querer pagar para apreciar ou participar desse tipo de atração. Ledo engano; é o modo como se apresenta uma manifestação cultural que a torna atraente. Neste caso específico, a Capital Junina do Ceará está a apenas 25 quilômetros da avenida Beira-Mar, onde ficam os principais hotéis de Fortaleza.
O modelo tríplice adotado por Maracanaú ainda levará um bom tempo para ser o tal, mas já está preparado para receber turistas. Embora seja um espaço provisório de interações, ele desenvolve-se subjacente a uma manifestação cultural de grande valor para o Ceará. Gostei de ter ido ao São João em Maracanaú. Lá, me diverti, encontrei amigos e refleti sobre o que essa festa pode representar para além do evento no nosso horizonte cultural e turístico.