O filme sueco-norueguês Doente de Mim Mesma/Syk Pike (2022), em exibição na plataforma Mubi, satiriza a autoexposição compulsiva a que tem se reduzido o cotidiano de muitas pessoas nestes tempos de desorientação de singularidades, subjetividades, desejos e sentido de existir. O diretor Kristoffer Borgli imprime toques de ironia severa nesse drama tão próprio de um mundo movido por éticas dissonantes e descoladas de limites e distâncias para o culto à exibição.
A protagonista Signe (Kristine Thorp) disputa visibilidade com o namorado, um artista contemporâneo que começa a despontar no mercado e na mídia. A enfermidade dos dois tem uma combinação explosiva de carência de atenção, necessidade de afirmação e egocentrismo. Em princípio, parece apenas um caso de competição de vaidades tóxicas, mas, no desenrolar da relação, percebe-se uma dimensão trágica que se dá em uma instância psíquica extrusada do narcisismo.
Diferentemente do Narciso, mito grego que, tendo morrido afogado em seu próprio reflexo, dá origem ao conceito ‘narcisismo’, Signe destrói sua beleza e sua vida em busca de ser notada. O que poderia ser um impulso de valorização pessoal, de paixão por si mesma, passa a ser um desejo fantasmático de aparecer, entre confusões de imagens, sentimentos e realidades. A sensação de desamparo que a acomete é alimentada pela onipotência da ilusão.
O despertar de Signe para o poder de atração da morbidez acontece no dia em que ela socorre uma senhora atacada por um cachorro na porta do café onde trabalha como gerente. Com atitude valorizada pelos presentes, por policiais e pela mídia, ela identifica na blusa ensanguentada o principal ponto de atenção das pessoas que a ela se dirigem. E testa a descoberta indo para casa sem trocar de roupa e sem lavar o sangue do rosto. No ônibus e nas ruas, ela sempre depara com alguém que se preocupa com a sua aparência sinistra.
A partir dessa constatação, inicia-se o seu exibicionismo psicótico. O fascínio que a angústia de não ser percebida como uma pessoa especial provocava nela, enquanto força pulsional, aciona gatilhos emocionais negativos de sedução, mesmo que aterrorizantes. A personalidade de Signe vai se alterando e o seu amor-próprio é transferido para a criatura que ela inventa como performance de satisfação, tendo como trunfo um medicamento que provoca deformações na pele.
Com isso, faz um repugnante experimento de bioarte em seu corpo e sente-se confortável com a abundância de olhares que conquista. Automutilada e com a pele necrosada, ela destaca-se ante o marketing de compaixão de uma empresária que a contrata para ser modelo em uma agência de moda inclusiva. Nesse momento, ela consegue aparecer mais na mídia do que o namorado, que, por sua vez, chega a propor a Signe criar alguma instalação baseada na situação dela.
O extremismo do culto à atenção em Doente de Mim Mesma é escancarado como abuso psicológico em uma sociedade cada vez mais refém da obsessão pela autoimagem, nem que seja disforme. O diretor, que é também o roteirista, trabalha bem a escalada do quadro delirante agudo instalado na mente da protagonista, desde o teatro emocional que ela pratica, inventando problemas que não tem para se sobressair em momentos sociais, até chegar à desordem escatológica que domina seus atos.
Como um bom filme que mexe ironicamente com o presente e urgente tema das carências de empatia potencializadas pelas redes midiáticas, pela indústria de correções estéticas e por contradições do autoconhecimento holístico, essa não é uma obra muito confortável de ver. Ao fim das contas, de um modo ou de outro, todos nós fazemos parte desse sistema de crenças que pode levar qualquer um ao exibicionismo psicótico.
Fonte
Jornal O POVO