Satisfeito, obrigado!
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 03 de Janeiro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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É velha a máxima de que devemos comer para ficar satisfeitos e não para ficar cheios. Embora sendo essa uma sabedoria comum, não é tão comum respeitá-la. No dia a dia acabamos comendo demais ou deixando o resto no prato; resto que invariavelmente toma o destino dos resíduos imprestáveis. Alguns restaurantes até separam essas sobras e as fazem chegar a pessoas que têm fome, mas como essa é uma operação delicada, por envolver assunto de saúde e preservação da qualidade dos alimentos, muitos param na boa vontade e jogam as sobras no lixo.

Do encontro entre a vontade de não ver mais isso acontecer e a consciência de que o problema da alimentação é um dos mais críticos no mundo, nasceu a ideia do projeto Satisfeito, uma movimentação internacional de sociedade civil, que trabalha com a questão do desperdício de alimentos, por meio de ações voltadas à consciência de frequentadores de restaurantes, bares e lanchonetes, empresários do setor de refeições e entidades que cuidam da alimentação de crianças em situação de vulnerabilidade.

Vários restaurantes já assumiram esse compromisso, considerando que com o projeto Satisfeito fica mais fácil de contribuir para evitar o desperdício de comida e ao mesmo tempo apoiar o trabalho de organizações que desenvolvem ações de combate à fome. O funcionamento é simples: ao escolher o seu prato preferido em um restaurante a pessoa pode optar pela versão Satisfeito incluída no cardápio dos estabelecimentos que aderirem ao projeto. Isso significa que o prato será servido com um terço a menos da quantidade habitual, mas custa o mesmo valor. Assim, a pessoa se determina a comer um pouco menos e, simultaneamente, autoriza o restaurante a repassar a diferença em dinheiro para o projeto Satisfeito.

Os restaurantes e as entidades cadastradas, bem como os resultados mensais da campanha, podem ser acompanhados por meio do site www.satisfeito.com. No Brasil esse projeto tem como articulador o Instituto Alana, organização que trabalha há quase duas décadas na viabilização de soluções de problemas que envolvem a infância. O compromisso do Alana neste caso específico é fornecer a estrutura de apoio necessária para que os recursos arrecadados pelos restaurantes cheguem integralmente aos legítimos beneficiários, que são crianças assistidas por organizações da sociedade civil. O projeto Satisfeito está em fase de implantação e foi lançado em São Paulo no final do ano passado, com o plano de alcançar outras cidades brasileiras.

Ao optar por um restaurante, bar ou lanchonete participante do projeto Satisfeito, além de cuidando de si, comendo apenas o necessário, a cidadã e o cidadão estarão apoiando essa campanha de combate ao desperdício de alimentos e de erradicação da fome infantil. Ao invés de deixar parte da refeição no prato ou de comer tudo, às vezes até sem querer mais, pode-se muito bem tomar a atitude de destinar uma porção a quem não tem o que comer. Trata-se de uma decisão educativa que podemos impor a nós mesmos, com a finalidade de criar hábitos mais ajustados a uma cultura de sustentabilidade.

A segurança alimentar é um dos temas mais urgentes da atualidade, nos seus aspectos econômicos, socioculturais e geopolíticos. Com populações cada vez mais numerosas, concentradas em espaços urbanos e displicentes com o desperdício, o abastecimento tornou-se um problema que precisa ser assumido como estratégico em todos os lugares. A fome, tanto quanto a sede, está na base da hierarquia das necessidades das pessoas e das nações. Ao longo da história os alimentos assumiram papel fundamental na construção de hábitos e na definição do comportamento humano.

As circunstâncias atuais exigem que pensemos nisso; exigem que ajamos na busca de alternativas que nos levem a novos estilos de vida, nos quais a questão dos alimentos seja prioritária em toda a sociedade. Essa transformação passa por procedimentos simples como o da escolha do prato Satisfeito em um restaurante. Da mesma forma que cresce a tendência de a sociedade observar e rastrear produtos que atendam a requisitos de sustentação ambiental e social, faz-se indispensável a participação cidadã em projetos de redução do desperdício, de saudabilidade e de acesso à alimentação.

A porção de comida que evitamos que seja desperdiçada com o prato Satisfeito me faz lembrar do conto Um mendigo original, de João do Rio (1881 – 1921), no qual o cronista carioca fala de um homem que sempre pedia aos outros o que eles tinham, mas que não precisavam, portanto, ao dar não lhes faria falta. Ao permitirmos que o restaurante deixe de levar ao fogão uma fração do nosso prato, para colocar em um fundo social o seu valor relativo, mais do que cedendo o que não nos faz falta estamos nos beneficiando, por deixar de comer o desnecessário.

Nem parece, mas essa simples atitude de deter a nossa gula é um contribuição concreta para o alcance da prioridade número um – “Acabar com a fome e a miséria” – dos oito objetivos do milênio, estabelecidos em 2000 pelas Nações Unidas, como maiores problemas mundiais a serem superados até 2015. Se para quem falta comida no prato a fome é uma forma de violação dos direitos humanos, para quem deixa comida no prato o desperdício é uma declaração de insensibilidade e de ignorância com relação à pauta de um dos mais profundos problemas do mundo.

Temos a felicidade de no Brasil não haver falta de alimentos, a despeito de ainda existirem milhares de pessoas que passam fome. Estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) apontam para mais de trezentos milhões de hectares a dimensão da área agricultável brasileira, com umidade e luz solar favoráveis, incluindo terra para lavoura, pastagens e espaços a serem postos em condições de produção. Vale ressaltar que grande parte dos solos férteis ocupados com concentrações do agronegócio – esses oceanos de riquezas que cercam pequenas ilhas de comunidades pobres – pode ser preparada para a agricultura familiar, melhorando inclusive a distribuição territorial da população.

Parece digressão, mas estou entrando nessa seara com a intenção de dar escala ao raciocínio sobre a problemática da demanda por alimentos vis a vis o crescimento demográfico no planeta e, principalmente, o aumento do consumo per capita no caso da China. No Brasil, a cultura do Satisfeito precisa chegar inclusive ao âmbito da chamada “nova Classe C”, caracterizada antes de tudo pelo aumento de poder aquisitivo, o que certamente está elevando o percentual de desperdício em restaurantes, bares e lanchonetes. Alimentar-se além do necessário é um equívoco cultural que, por motivos diferentes, atinge todas as classes sociais.

Em geral estamos nos devendo uma adequação dietética. Negligenciamos muitos produtos de alto valor nutritivo que muitas vezes estão à nossa mão, tais como os frutos do mar, os derivados do caju, da mandioca, de jerimum, e, mais recentemente, até o feijão. A situação da segurança alimentar tende a ser agravada em todo o planeta e o Brasil tem um papel de suma importância a desempenhar no cenário atual e futuro. E não terá como fazer isso se não começar em casa com compartilhamento de calorias e com hábitos que podem influenciar nos jeitos de mudar o mundo.