Saudações alvinegras
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 12 de Maio de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Os clubes de futebol, como tudo o que tem história, são criados, se desenvolvem, alguns desaparecem e outros conquistam vida longa e renovada, como o Ceará, que em 2014 chegará aos 100 anos de fundação, com uma torcida solar rejuvenescida no claro e escuro do tempo. O futebol se manifesta com jeito próprio entre encantos e desencantos vindos desde as mais puras fantasias de nossas infâncias.
Escolher um time é definir-se como parte de uma torcida, onde as regras da racionalidade não se aplicam. Torcer é algo muito subjetivo, que depende de diversos fatores, dentre os quais a boa fase vivida pelo time no momento em que se desperta para o esporte, além de suas próprias representações simbólicas. O direito à experiência de torcer, de ter ídolos, de partilhar sentimentos comuns com anônimos, assumindo os percalços e encantos que isso significa é engrandecedor.
Movido por essa compreensão, mesmo sendo torcedor do Ceará, procurei não forçar a preferência dos meus filhos na escolha dos seus times. O risco foi grande, considerando a má fase do Vovô nos últimos anos. Cheguei a ir ao estádio com eles, ora em jogos do Ceará e ora em partidas do Fortaleza, neste caso, atendendo a demandas provocadas por alguns dos seus amigos de escola. Ficou nisso por um período, o que foi importante para eles começarem a demonstrar interesse pelo caderno Jogada, a ver alguns jogos pela televisão, inclusive das ligas internacionais, e a comentar os resultados das partidas.
Quando percebi estava lá, o meu filho mais velho, o Lucas, de 11 anos, querendo ir ao estádio torcer pelo time escolhido por seu coração alvinegro. Desde o ano passado que passamos a ir ao estádio com mais freqüência. No dia do meu aniversário, eles me deram de rpesente uma camisa oficial do Ceará. O mais novo, o Artur, de 9 anos, foi cúmplice na escolha do presente, mas fez questão de ressaltar que não é Ceará, nem Fortaleza, nem Horizonte, nem Guarani… Apenas gosta de jogar futebol, de disputar campeonatos em videogames e de ver as melhores jogadas na televisão.
Dois anos atrás era mais ou menos essa a posição do Lucas. Cada qual tem o seu tempo, por isso não dá para especular que decisão tomará o Artur. Enquanto isso, Lucas e eu estamos adorando a experiência única do abraço de desconhecidos que se reconhecem pela força do preto e do branco, onde a emoção fica mais à vontade. Tem sido muito rica para nós a vivência da psicologia da multidão, das filas para comprar o ingresso e para entrar no estádio, da arquibancada com pipoca, água mineral, palavrão e o “Uhhh!” uníssono provocado pela jogada que não se completou. E, claro, da explosão do gol.
Na partida final do campeonato cearense, realizada domingo passado (8/5) no estádio Presidente Vargas (PV), entre Ceará 5 x 0 Guarani (J), que deu o título de campeão arrastão ao Vovô, apreciamos algumas manifestações que ilustram bem a diversidade da comunicação nesse ambiente de diversão e catarse. Encontramos uma expressão autêntica da nossa molecagem logo que chegamos ao estádio e vimos um cartaz com a foto do Bin Laden vestindo a camisa do Fortaleza, no qual se lia os seguintes dizeres: “Confirmado, Bin Laden morreu de desgosto”.
Do riso, saímos para a vaia, quando antes do início do jogo, observamos a colocação no círculo central do campo de uma propaganda da Pepsi, com as cores vermelha, azul e branca – que caracterizam aquela marca de refrigerante – associada pela torcida à bandeira do Fortaleza. Não deu outra: vaia geral. Nas arquibancadas, além da recusa do torcedor de consumir o produto daquela “publicidade tricolor”, o enredo voltou-se para a falta de sensibilidade de um marketing que poderia muito bem evitar esse tipo de reação da torcida simplesmente reproduzindo a logo na sua aplicação em preto e branco.
Dentre os episódios que só é possível experienciar estando no estádio, um dos que acho mais curiosos é quando o torcedor fala baixinho com o jogador que está fisicamente no campo distante, em uma comunicação quase silenciosa: “Fernando Henrique, você me orgulha”; “Vai, Nicácio, mostra que tu é mesmo artilheiro”; “Olha, Geraldo, o Osvaldo está sozinho”; “Chuta, chuta, Thiago Humberto!”; “Ei, Mancini, bota alguém para ajudar o Iarley”… Nesses momentos o torcedor conversa sozinho, em uma situação de transferência, mas desconfio que de alguma forma o atleta escuta seu sussurro perdido na zoadaria do estádio.
A arena de esportes é um lugar de criação e de recriação conjunta, um espaço de interações. A coeducação desportiva não se resume ao preenchimento dos motivos que aproxima as pessoas nas arquibancadas; ela possibilita o exercício de diferentes modos de ver, pensar, sentir e dizer do mundo entre vozes recatadas e expansivas. Neste aspecto, gosto de acompanhar meu filho se constituindo pelos significados do crescimento social, seus movimentos em busca de ser o que é potencialmente. Sem contar que o tempo dele é também o meu tempo nessa prazerosa articulação intergeracional.
Uma das características que aprendi a apreciar no futebol é que em torno da bola há um pacto de contraversão por meio do qual nada pode ser afirmado sem levar em consideração o contraditório. Chamar o juiz de ladrão? Pode. Dizer que o técnico é vendido? Pode. Acusar o atleta de mascarado? Pode. Xingar a mãe do presidente do clube? Pode. São gritos que não necessitam de provas para serem bradados, simplesmente porque as acusações não precisam ser reais para lhes dar motivo. Na torcida, todos podem impor suas razões, sabendo que dificilmente alguém as acatará.
Fora das linhas do campo, o combustível do futebol é o falatório, a novelização, o elogiar e o esculhambar. Tudo o que acontece em uma partida nos afeta instantaneamente, nos faz chutar o nada, nos irrita, nos levar a cantar de alegria e a dizer palavrões. Vestir a camisa do time é vestir a partida inesquecível, a decisão dramática, o lance marcante. Tenho predileção por jogo bonito, bem jogado, elegante e raçudo ao mesmo tempo. Prefiro perder uma partida bem disputada que ganhar jogando feio, com movimentação travada, em busca apenas do resultado.
Da arquibancada do estádio ao sofá de casa, o torcedor contempla, vibra, lamenta e chora porque mais do que pelo resultado do jogo, ele torce também por si, pelo seu repertório de reações e capacidade de traduzir a partida em um idioma de universalidade. Esse me parece ser o grande segredo do futebol. Não é à toa que a Federação Internacional de Futebol (Fifa) tem mais países filiados do que a Organização das Nações Unidas (ONU), em um placar de 208 x 192. O futebol faz a grande liga de nações em um tipo de congraçamento que transpassa culturas, ideologias, situações políticas e condições econômicas.
Torcer é como nadar e andar de bicicleta, quem aprende nunca esquece. A criança sonha em ser jogador e se vê realizando os lances mais espetaculares. Na arquibancada, troca passes com o adulto, no tempo em que este também sonhou assim. E mesmo que um se projete no futuro e o outro se traga do passado, o encontro acontece no presente. O abraço do pai e do filho na hora do gol é o abraço de quem já passou por isso com quem está descobrindo a emoção de torcer. Cada lance é um lance, cada vibração uma vibração, um olhar, um gesto, uma identidade que se pronuncia. E viva o Ceará, campeão de 2011, com palmas especiais para o Dimas Filgueiras, que uniu caráter, competência e compromisso na revitalização do coração alvinegro.