Segredos da Bogotá bela
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 29 de Janeiro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A imagem mais marcante que guardara de Bogotá estava fixada em uma foto que fiz da cidade há vinte anos, com tanques do exército nas ruas. Naquele momento os sinais de insegurança pareciam mais fortes do que as atrações históricas e culturais dos bogotanos, o que perturbou as minhas impressões sobre o lugar. Mesmo assim, fiquei com o desejo de um dia retornar para vivenciá-la melhor. E estou fazendo isso por esses dias, com a minha família.
De janeiro de 1989 a janeiro de 2009, muita coisa mudou em Bogotá. As editoras dos guias de turismo no Brasil precisam saber disso. De Fortaleza a São Paulo, procurei uma publicação cultural ou turística sobre Bogotá e não consegui encontrar. Nem por isso alteramos nossa viagem a capital colombiana como destino de férias.
Acolhidos pelo amigo, professor e jornalista Jorge Consuegra e sua família, com quem estivemos em Bogotá duas décadas atrás, desembarcamos de coração aberto para um agradável reencontro turístico, cultural e de amizade. Escrevo este texto em um domingo de sol brilhante e dezessete graus centígrados, após uma caminhada pelas vastas áreas de pedestres e ciclistas dessa cidade a mais de 2.500 metros acima do nível do mar.
Bogotá criou nos últimos anos cerca de um milhão de metros quadrados de novas praças e áreas de lazer. A cidade tem 350 quilômetros de ciclovias e um sistema integrado de ônibus e trem, que melhorou significativamente a questão do transporte coletivo. O Transmilênio, como é chamada essa articulação de transportes, foi inspirado na gestão de tráfego integrado de Curitiba.
As ciclovias me impressionaram. A parte conhecida como rota do trabalho é permanente e tem a preferência nos cruzamentos. O governo municipal está partindo agora para a criação de um sistema de bicicletas públicas, a fim de facilitar mais ainda a vida de quem trabalha. Nos finais de semana e feriados é intensa a movimentação das pessoas pelas avenidas reservadas para o transito de ciclistas, pedestres, cadeirantes, skatistas e patinistas. Nas margens ajardinadas a economia popular marca presença de forma estruturada para vender água, refrigerante e arepa, muita arepa, um tipo de bolo de milho consumido amplamente pelos colombianos.
Bogotá, que já passa de oito milhões de habitantes, está bem adiantada na tendência urbanística de tratamento urbano como centros de relações individuais e coletivas duradouras. O que me parece o segredo da conquista do respeito comunitário e da liberdade de locomoção com redução da supremacia dos motores dos automóveis é que a intervenção pública no transito de Bogotá não está fundada apenas na engenharia de trânsito, mas, antes de tudo, na melhoria da qualidade de vida dos bogotanos.
Para melhorar a qualidade do ar, baixar os índices de poluição sonora, aliviar mais os gastos dos trabalhadores com locomoção e tornar a paisagem mais envolvente e contemplativa, o problema urbano foi enfrentado por políticas de uso pleno dos espaços públicos.
O modelo de cidade do imediatismo desumano vem pouco a pouco perdendo espaço para conceituações urbanas voltadas à democratização do bem-estar, com ganhos sociais e ambientais. Medidas efetivas de correção de rumos vêm sendo cobradas pela sociedade civil e destacadas na agenda política em todo o mundo. Programas inovadores de promoção da cidadania pela reinvenção do público, como o que vem sendo desenvolvido em Bogotá, constituem a base para o futuro das cidades que querem ter futuro.
Experiências como a dos espaços “woonerf”, iniciadas em Amsterdã na década de 1970, que chegam a eliminar a separação de calcada e rua para que a circulação de pedestres e veículos seja regida pelo respeito ao outro; e da transferência de pistas asfaltadas para o trânsito exclusivo de bicicletas e pedestres, como está sendo iniciado em Nova Iorque, indicam que a noção de sociedade pós-automóvel já está pontencialmente assimilada em sua dimensão de acessibilidade e usufruto comum dos espaços públicos.
Encontrei na Bogotá de hoje novas áreas públicas de grande relevância, além de logradouros limpos, parques de bairros, bibliotecas distritais e praças recuperadas, readequadas e redesenhadas, onde mais de cento e trinta mil árvores foram plantadas. Dentre os espaços com atração para crianças, como o Museo de los Niños, o Salitre Mágico, Mundo Aventura, Multiparque e outras zonas lúdicas, realço a Maloka por ser um surpreendente equipamento de relações curiosas com a natureza, a ciência e a tecnologia, que conta com exposições interativas, atraentes demonstrações de experiências, cinema 3D e cinema 360 graus.
Entramos na Maloka pela manhã com os nossos filhos e só saímos à noite, quando as luzes começaram a ser apagadas. Mesmo assim não deu tempo brincar direito. É um lugar que, se melhor divulgado, seria certamente visitado por crianças de vários países. Já são muitos os pais e educadores conscientes de que o mundo da criança carece de alternativas que respeitem a infância.
Embora sustentada em referências um tanto superficiais, a visão comparativa entre a Bogotá que visitei há vinte anos e a de hoje me põe a refletir sobre o quanto é urgente e possível refazermos o conceito de vida urbana. Observo o patrimônio ressignificado da capital colombiana e fico imaginando o tanto que foi investido em política de comunicação e de relacionamento para a equalização de um comportamento social propício à sua transformação.
A reconstrução dos laços comunitários na vida urbana avançou a níveis consideráveis porque os cidadãos comuns e anônimos assumiram o seu papel transformador. E isso é o resultado de um sentimento de apropriação da cidade que nasce da consciência histórica e passa pela efetiva aplicação do discurso por uma nova ética urbana.
A percepção de coesão social e geográfica da cidade que os bogotanos demonstram ter resulta de campanhas que ajudam a olhar, a sentir, a sonhar e a agir. A mudança nas atitudes dos habitantes de um lugar depende do seu grau de cultura cidadã, o que os torna capazes de valorizar as relações interpressoais, de desmarginalizar bairros, enfim, de dar visibilidade ao essencial na permanente construção sobre o construído.
Uma das ações de comunicação empreendidas em Bogotá foi a que rebaixou a onda de que a violência, a insegurança, a desinstitucionalização e outras mazelas produzidas pelo fundamentalismo de mercado está vinculada a uma problemática mundial e nacional, que pouco pode ser alterada no plano local.
Ao escutarem os moradores de Bogotá, os gestores que conduziram a transformação da cidade identificaram que, independente de classe social, de origem, de poder econômico ou nível escolar, as pessoas desejavam viver em um lugar melhor e que estavam dispostas a contribuir para mudar.
As desigualdades foram postas, reconhecidas e as soluções pensadas a partir de uma regulação comum, com programas sociais específicos para as zonas mais desassistidas e estímulo ao pagamento voluntário de impostos adicionais para subsidiar despesas de integração e de harmonização da cidade.
Está dando certo. Bogotá mudou muito. Levo comigo uma nova foto da cidade. Desta vez a imagem mais marcante é a da alegria das pessoas nas ciclovias. E claro, algumas outras como a da Catedral de Sal na mina de Zipaquirá, das poéticas ruas do povoado de Tabio, da receptividade calorosa dos bogotanos e do Museu do Ouro, com suas trinta e três mil sofisticadas peças, das que restaram do saque dos conquistadores ao patrimônio dos povos precolombianos.