As urgências decorrentes do atual drama social e político brasileiro podem até não recomendar, mas dificilmente sairemos do imbróglio degradante em que nos metemos se não encontrarmos um jeito de pensar na serenidade como uma virtude necessária à quebra da lógica provinciana que a tudo torna eleitoral; essa prática comum aos caricaturais partidos de quermesse.
O Brasil tem tantas contraposições reais e profundas entre privilegiados e marginalizados a serem resolvidas que insistir apenas em ataques e contra-ataques acusatórios deriva para o grotesco. Apostar em manobras de rinhas de efeito moral, com troca de farpas entre pessoas convictas de possuírem verdades, nem sempre tão verdadeiras, vai tornando mais e mais improvável a construção de um sentido de País.
Está bem, a serenidade sempre foi considerada uma postura fraca, ao lado de outras de grande valor como a moderação, a sobriedade e a simplicidade. Historicamente o poder é de quem tem coragem, prepotência, ou seja, de quem tem conduta forte, violenta. Entretanto, foi essa forma de pensar e de agir que nos fez chegar a tantas situações indesejáveis, como a que leva alguém a se ofender com as diferenças.
O pensador e político italiano Norberto Bobbio (1909 – 2004) refletiu sobre a possibilidade de, sem qualquer submissão, darmos mais espaço à serenidade no enfrentamento dos conflitos sociais. Li com interesse o seu livro “Elogio da Serenidade” (Ed. Unesp, 2011), que trata da relação entre moral e política, e reforcei em mim a ideia da potência desse substantivo feminino no conceito de transformação coletiva que tenho chamado de cidadania orgânica.
Bobbio diz que serena é uma pessoa que deixa a outra ser o que é, dado que o tratamento agressivo tira de quem é agredido o poder de se doar. “A serenidade é uma disposição em relação aos outros que não precisa ser correspondida” (p.43). A sociedade civil, diferentemente dos partidos, pode conduzir as tensões políticas apelando aos melhores traços de quem pensa diferente.
A evolução para outra concepção de mundo requer o reencontro de valores comuns, muitas vezes apartados por divergências comportamentais que migram para ideologias calcadas em especificidades demolidoras do diálogo de pontos de vistas antagônicos e do confronto com decência. “Os problemas estão tão interconectados que não se pode resolver um sem que suscite um outro” (p.199).
É o caso do “mal-estar de natureza moral” (p.177) provocado pelo reflexo da competição instalada em alguns processos de avanços na dinâmica renovadora das interações sociais, cuja aversão de cunho preconceituoso estimula ressurgimentos teocráticos. Acrescente-se ainda a esse, digamos, “mau-senso”, a dissipação de esperanças resultante do choque entre o ideal aristotélico do bem comum e a realidade maquiavélica do próprio interesse nos embates pelo poder.
Que a serenidade é “a mais impolítica das virtudes”, Norberto Bobbio tinha plena consciência disso; porém ele estava desperto também ao afirmar que devemos procurar “compreender aquilo que existe além da política, sem que se ingresse, em suma, na esfera do não político” (p.39). Em uma sociedade livre as opiniões se chocam e, “ao se chocarem, acabam por se depurar” (p.118). Nessa luta de todo o tempo, a serenidade é mais influente nos campos de atuação social que não têm como fim a disputa por cargos. Governos e governantes passam, mas a sociedade permanece.