Sertão em fantasia
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 14 de Março de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Passei esses dias de Carnaval em Independência, nos Inhamuns. Há tempos não via o sertão coberto de tanta alegria. Água ainda não juntou o suficiente para dar a segurança desejada, mas o manto verde da mata viçosa parece um imenso parangolé, preparado e agitado por cada bicho e cada pessoa com o instinto e a alma em festa. Nenhuma pressa, nenhuma inércia. O mundo com toda a sua intensidade vital, acontecendo em fantasia leiga. A luminosidade da realidade natural em movimento, ofertando condições para a quietude da mente e, conseqüentemente, para a elevação da capacidade de olhar e sentir mais do que estamos habituados nos padrões da lida cotidiana.
Poucos minutos nessa sinergia e eliminamos uma série de toxinas culturais que obstruem o frescor do viver desarmado, do viver longe dos apegos desnecessários que, inadvertidamente, admitimos como verdadeiras conquistas sociais. Ao observarmos atentamente a grandeza do sertão, esquecido pelos planos oficiais positivistas, é possível ver muito mais do que um punhado de estatísticas perturbadoras, utilizadas pelos governos para sacar verbas, normalmente gastas em benefícios pessoais dos atravessadores políticos ou nas concentrações urbanas. Coração, senso estético, desejos, sonhos, força realizadora e fé, são componentes da alquimia interiorana, que não podem ser lidos através desses números viciados.
Não é a primeira vez que me empolgo com o sertão verdinho e cheio de robustez. Passei toda a minha infância e adolescência naquelas paragens, ouvindo o canto dos pássaros, sem querer controlá-los, sem dizer como deveriam cantar. Aprendi a respeitar o seu direito de cantar por prazer, para alegrar as manhãs, para encantar e seduzir parceiros, para espantar intrusos, para, enfim, exercer a liberdade da sua natureza. Cada vez que me reencontro nesse ambiente, aproveito para esvaziar calmamente a cabeça dos conteúdos e da dinâmica das práticas diárias. Contemplar a resistência de uma natureza tão agredida me faz flutuar em sua imensidão inabalável. Pressinto a parte dela que sou… e vou… e vôo.
Nas margens das estradas, a malva braba saúda os viageiros com milhares de pequenas flores amarelo queimado, na regência coreográfica dos ventos. Tantas flores não catalogadas, milhares delas, de todos os tipos, tamanhos e cores animam a paisagem. As borboletas enlouquecem em piruetas aéreas, com suas asas bordadas e lisas, com cores a gosto, propiciando a polinização. Na cerimônia ininterrupta da fauna e flora, pássaros, grilos e sapos em sons deleitosos, dão conta da trilha estereofônica que enche o tempo de magnitude e sossego. O legume está dando para quem plantou nas primeiras horas e o cheiro da terra revolvida, areja os pulmões dos que ainda semeiam, acreditando no prolongamento da estação chuvosa.
Mesmo os serrotes desmatados, erodidos pela ignorância, exibem um manto verde pontuado por saliências rochosas. É o aceno das indomáveis sementes silvestres que varam as mais duras secas para nos oferecer esse espetáculo de vida e beleza. No alto dos morros, na ladeira do Belém, cabritos observam o horizonte com a mais pura tranqüilidade. É incrível ver o mais buliçoso dos animais “meditando”, olhando o tempo, a amplidão do mundo. Se tivéssemos o mínimo de compreensão da importância do bode na nossa cultura, nossos morros e serras estampariam em seus picos mais visíveis, placas recortadas da figura caprina, em contraste com o fundo de azul celestial, como vê-se em abundância a referência do touro em outdoors personalizados por toda a Espanha. A ovinocaprinocultura respondeu por boa parte da viabilização de Canudos, do Caldeirão e continua básica à nossa economia de subsistência, com potencial de ser muito mais.
Em Independência, o céu estrelado tira a cidade da geografia representada no mapa preconceituoso em que está inserida, colocando-a visivelmente no espaço sideral. Na primeira noite, fiquei surpreso porque quase não havia iluminação pública, o que facilitava o brilho das estrelas. Os postes decoravam a escuridão com silhuetas delgadas, obeliscais. Descobri que a razão da novidade foi a retirada das lâmpadas pela população, numa prevenção aos besouros cascudos, potós, baratas-d’água e outros insetos que chegam com as chuvas. A cautela ecológica não havia reduzido, entretanto, o caráter poético resultante. Nas calçadas, as pessoas conversavam com leveza e descontração: muitas podavam as queixas e dores residuais da indiferença e do descaso a que são submetidas pelo jogo político de preservação da pobreza, purificando culpas e ao mesmo tempo desvencilhando-se por alguns instantes da memória carregada de injustiças. O estado de graças, as põe longe das miudezas dos favorecimentos, dos blefes bancários, da falta de trabalho, das cercas de arames farpado, das águas públicas com exploração particular e tantos outros desmandos do dia-a-dia.
A fantasia verde não é diferente das miragens do solo esturricado das previsíveis secas. Os elementos mudam, mas a alegoria é a mesma em seu ritual de inversão. Nós, nordestinos, vivemos um grande romance de cordel, onde todas as colagens da existência são possíveis simultaneamente. As hierarquias do tempo, da distância e das relações, formam-se e esvaem-se conforme a luz do desejo e a ousadia necessária para concretizá-los. Nossa história confunde-se com a história dos rios secos, dos riachos, das águas correntes, nômades, que brincam ao sol, sem temer o fenômeno da evaporação. O que difere o onirismo nas nossas estações é o grau de transtorno da mente que cada uma provoca. Na aridez da terra, a violência da política desavergonhada e de rapina quebra o sentido telúrico, enrijecendo almas e corpos. Na festa verde, entramos nessa alucinação de tanto apreciar a natureza em sua grandeza desconcertante, quando algo nos diz que somos bem maior por fazermos parte dela.