Setentão aprendiz
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 30 de setembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

FAC-SÍMILE

op_setentaoaprendiz

Risonho e pensativo foi como deixei a sala de cinema após ver o filme Um Senhor Estagiário (EUA, 2015), da cineasta estadunidense Nancy Meters, com as envolventes interpretações de Robert De Niro e Anne Hathaway nos papeis de Ben Whittaker e Jules Ostin; ele, um setentão que decide participar de um programa de estágio para idosos da empresa dela, jovem executiva criadora e diretora de um negócio de compras online.

Em sua afluência de comédia, com conceito de trama ancorado na dignidade e no humor, o longa trabalha a um só tempo a caricatura de autossuficiência, comum a jovens empreendedores de sucesso oriundos da economia de startup, e a desconstrução de alguns pressupostos invariavelmente dirigidos a pessoas de idade avançada, como se elas não tivessem espaço no mundo digital.

Por progressão satírica leve, o filme vai mostrando situações alusivas a esse fenômeno paradigmático da hipermodernidade, tanto no que diz respeito à questão da idade produtiva quanto a das relações sociais. Na tela, essa equação de cunho econômico e comportamental oscila na busca do equilíbrio entre a abundância e o descartável, o trabalho intenso e a ociosidade. E como é trivial nesse tipo de enredo, o cômico se junta ao dramático na combinação de papeis dissonantes.

Jules circula pelo escritório de bicicleta, esbanjando determinação e cabeça ligada, em sua concentradora e bem-sucedida performance de integrante de uma nova classe de fazedores, que se movimenta sempre presa à lógica de que o significado da vida está na carreira. A essas pessoas sobra pouco tempo para realidades mais elevadas e, principalmente, para exercícios de alteridade, o que as empurra para embaraçosos vazios existenciais.

O personagem Ben, setentão e viúvo, destaca-se, nesse contexto, exatamente por suas atitudes na atenção aos outros. A falta de disputa expressa na sua postura de estagiário torna a sua figura desconcertante. Ele não quer ser nada, superar ninguém, quer apenas ocupar melhor o tempo. Antes de aposentado havia sido vice-presidente de uma empresa de listas telefônicas e, embora o negócio que dominava tenha perdido a razão de ser, ele sabia que tinha muito como ser útil.

O risível nesse filme está no contraponto feito entre a autoafirmação do triunfo performático e a força contida da experiência em situação de descarte. Com humor deleitoso, Um Senhor Estagiário alcança o amplo propósito de divertir e de produzir reflexões, dando à estroinice e à intolerância a comicidade das exceções. Tudo isso sem julgamentos e sem vilões, apenas mostrando personagens como estão, e não necessariamente como são ou seriam em outras circunstâncias.

Alivia constatar que nisso tudo não há a pecha de autoajuda nem o discurso do “no meu tempo era melhor”. O filme também não faz julgamentos, apenas coloca situações em que o riso nasce da dureza dos fatos relatados, entre a concentração de afazeres nas mãos da jovem empreendedora e a disposição do setentão de estar aberto e disposto a aprender, e suas consequências. Com todas as identificações soltas no escurinho do cinema, a plateia ri da nossa própria caricatura social.