Fui ao cinema ver o filme “O Auto da Compadecida 2”. Procurei não ler nada antes sobre a nova produção. Tentei o impossível de não fazer comparações entre o 1 e o 2, mas o misto de continuação e remake não me ajudou. De todo modo, foi uma alegria rever dois personagens excepcionais, interpretados por dois atores também grandiosos. 

 As vozes dos corpos e os trejeitos das falas de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), em cumplicidade com a palavra ilusionista da sabedoria astuciosa popular, ante os interesses fantasiosos da coletividade em ziguezague na exploração do insólito, são sempre admiráveis. 

 Matheus e Selton, com mais 24 anos de idade em relação ao tempo que fizeram o primeiro filme, seguem tão atemporais quanto Chicó e Grilo. Já o filme envelheceu, mesmo contando com efeitos visuais e recursos digitais de última geração. Não é isso que dá a excelência a aventuras como as desses dois personagens tributários de um complexo simbólico tão rico. 

 Guel Arraes, que assina o roteiro com João Falcão e a direção com Flávia Lacerda, arrisca um emocionalismo pouco atraente, quando tudo pede fruição do riso e sequência criativa. A sensação que dá é que faltou pesquisa. Quando Ariano Suassuna (1927 – 2014) escreveu a peça original, ele foi buscar elementos em folhetos de cordel que contavam as alegorias do enterro da cachorra, do cavalo que defecava dinheiro e do castigo da soberba. 

 Esse problema de não tratar a cultura cômica popular entendendo profundamente as suas próprias medidas tem sido questionado ao longo do tempo. Mikhail Bakhtin (1895 – 1975), o pensador russo, filósofo da linguagem, chamava a atenção para o erro da modernização grosseira que se fazia sobre as inúmeras formas de criação presentes na dramaturgia do riso medieval. 

Selton Mello (Chicó) e Matheus Nachtergaele (João Grilo) em “O Auto da Compadecida 2”. Foto: Laura Campanella

Os papeis adicionados à nova versão, em decorrência da passagem do tempo real e da ficção, não dão conta de suprir as lacunas deixadas pelos anteriores. Absolvido pelo Tribunal Celeste, o cangaceiro Severino, no filme 1, não foi para o inferno, mesmo tendo cometido tantas mortes, porque não podia responder pelos seus atos em um mundo que só lhe dera essa oportunidade de existir. Entretanto, o cangaceiro Joaquim, do filme 2, perde a dignidade e vira um capataz. 

 O filme 2 do “Auto da Compadecida” tomou o rumo estigmatizante da vida nordestina, com cenário distópico, em que pese a atualização nas comunicações e nos transportes, com relação ao filme 1. Mais racional do que intuitivo, a obra tem pouca graça nova. Para dar risada mesmo, só tem o momento em que o Chicó, por natural frouxidão, não consegue gritar o nome do João Grilo em um comício, como havia combinado com o amigo. 

 A imersão do espectador é prejudicada em muitas partes do filme. A pior de todas é o merchandising forçado de uma empresa de produtos à base de amendoim. Em escala mais leve, está o discurso de simpatia com o público evangélico e feminino. Por último, a duração extensa de algumas passagens, como a do julgamento de João Grilo, que poderiam ser menos enfadonhas. 

 João Grilo e Chicó são figuras catalisadoras da condição humana em invencionices sobreviventes. Isso os torna permanentemente encantadores. Exagerados, divertidos e comoventes, eles seguem muito bem representados por Matheus Nachtergaele e Selton Mello em “O Auto da Compadecida 2”, um filme que não parece tão genial comparativamente com o anterior, mas que entreabre o espaço do riso em tempos tão sisudos. 

Fonte:
Jornal O POVO