Sobre fuleiro e fuleiragem
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 25 de junho de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Nunca fiquei confortável com as explicações dos etimólogos, filólogos e dicionaristas para a origem da palavra “fuleiragem”. Que no senso comum o significado de “fuleiro” seja reles, imprestável, sem qualidade, medíocre, ou que o termo sirva para apontar quem age irresponsavelmente e que não parece confiável, é fato. Porém, toda vez que procurei ler sobre a origem dessa palavra tão comumente utilizada no Brasil, sobretudo pelo espírito moleque da cearensidade, não fiquei satisfeito com as explicações encontradas.
Uns dizem que o vocábulo “fuleiro” chegou ao Brasil nas caravelas portuguesas e naquele tempo já seria um derivado de “foleiro”, pessoa que faz, vende ou toca fole. Neste caso, imagino que poderia também dizer respeito aos artífices que trabalham com foles produzindo vento para ativar a combustão de fornalhas para a fundição de metal ou até mesmo para atiçar brasa nas cozinhas de fogão à lenha. Em qualquer dos casos, o que talvez justificasse o emprego pejorativo dessa palavra contra alguém seria um preconceito à condição social dessas pessoas.
Não duvido que, por uma simples questão fonética, o sotaque lusitano tenha ajudado a confundir “foleiro” com “fuleiro”. Nada disso, contudo, atende à minha convicção de que existe algo mais profundo lastreando o sentido negativo do emprego da palavra “fuleiragem”, como o modo de agir de um “fuleiro”. Encontrei ainda uma vertente etimológica indicando as raízes de “fuleiro” na palavra “fullero”, com a qual os espanhóis definem alguém que “engana”. Indo um pouco mais fundo, os estudiosos do assunto explicam que “fullero” deriva do castelhano “fulla”, que quer dizer falsidade.
E, como essas, outras suposições tentam esclarecer qual a procedência da palavra “fuleiragem”, mas não do seu uso torpe. Todas certamente aportam contribuições importantes à compreensão de como e para quê nos valemos desse termo, embora eu não consiga encaixar tais conjeturas à dimensão da aplicação do termo “fuleiro” no seu tradicional uso depreciativo, nem na sua extensão humorística praticada no Ceará.
O boneco “Fuleiragem”, criação do Pedro Boca Rica (1936 – 1991) para o humorista Augusto Bonequeiro, é um exemplo concreto do sentido “malcriado” atribuído à “fuleiragem”. Quando o bregastar Falcão canta: “Meu amigo, se algum desafeto roubar sua mulher / sua maior vingança é deixá-lo ficar com aquela fuleragem” (“A esperança é a única que morre”, CD “500 Anos de Chifre”, 1999), ele está refletindo no seu vocabulário de escracho o significado de desaprovação social da “fuleiragem”.
Com a licença devida aos estudiosos do assunto resolvi inscrever uma hipótese sobre a raiz do significado da palavra “fuleiro”, na sua ardilosa conotação brasileira. A meu ver, o uso desdenhoso de “fuleiro” vem de uma relação dos vendedores e compradores de escravos com o povo “fula”, negros mestiços e majoritariamente muçulmanos, integrantes do grupo historicamente denominado de sudaneses, normalmente transportados para a Bahia como vitimas do comércio internacional de escravos para o Brasil.
Como eram de uma cultura pastoril nômade e acostumados a circular por todo o ano, do sol nascente ao sol poente do norte africano, de dia tangendo animais e de noite fazendo poesia e contando histórias ao luar, os “fula” contrariavam as expectativas dos recursos desumanos que moviam a globalização de mão de obra escrava. Diferentemente do grupo banto, proveniente da África central, a relação intensa com outros mundos, especialmente com os árabes, dava aos fulas uma percepção mais crítica da situação em que viviam.
Os fulas haviam se libertado das diferenças étnicas e, no século XIX, época em que os movimentos abolicionistas ganharam corpo no Brasil, passaram por um intenso processo de transfiguração social, econômica e política, por efeito da campanha de inspiração religiosa islâmica (jihad), que permeou a região – hoje ocupada por países como o Mali, a Nigéria, o Senegal, a Costa do Marfim, Camarões, Níger, Burkina Faso, Gana, Guiné e Benin, dentre outros – de um código de comportamento inspirado em paciência, autocontrole, disciplina, modéstia, prudência, hospitalidade e respeito ao outro.
O famoso cantor fula, Baaba Maal, nascido no Senegal, mas que canta basicamente em Pulaar, o idioma para a comunicação intercultural dos fulas, escreveu na capa do seu CD “Missing you” (2001) que “as glórias passadas são os contos orgulhosos de hoje e os sinais do amanhã”. Mesmo vivendo em diversos países e falando outras línguas e dialetos, os fulas, estimados em cerca de 50 milhões de pessoas, têm um fundamento cultural comum que os une onde quer que estejam.
Se a força cultural dos fulas tirava do sério os senhores de escravos que passaram a chamar a todos os negros que os contrariavam de “fuleiros”, os mestiços de negro e mulato também eram chamados de “fuleiragem”. Por extensão, essas palavras passaram a designar de “fuleiro” qualquer um que não os agradasse. O que está nos compêndios etimológicos e nas páginas dos dicionários faz parte dessa história, mas bem que caberia no conjunto de acepções referentes a esses vocábulos o acréscimo de uma nota, associando “fuleiro” e “fuleiragem” a alguém virtuoso, divertido e pregador da harmonia social.