Sobre o sonho da juventude
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 18 de Agosto de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A sociedade brasileira é historicamente aberta; o que faz do Brasil um país que não tem medo de mudar, nem de ensaiar novas experiências. Esse ativo, próprio da miscigenação e sua textura multiétnica, é um diferencial comparativo de grande valor no redesenho geopolítico e econômico mundial. Basta observar que enquanto parte significativa da juventude dos países mais industrializados entra em fechamento nacionalista, um número expressivo de jovens brasileiros trama novas identidades em arranjos culturais compartilhados.
O mapeamento dos valores, crenças, visão de país e de novos modelos de ação coletiva, que estão na perspectiva dos brasileiros de 18 a 24 anos, aparecem com evidente otimismo no relatório da pesquisa “O Sonho Brasileiro”, realizada entre dezembro de 2009 e junho de 2011, pela Box 1824, com apoio do banco Itaú. Estive na terça-feira passada, 16, no Itaucultural, em São Paulo, como debatedor dos aspectos de Fusões Criativas presentes nesse projeto e reforcei o meu alinhamento com esse sonho, no que ele tem de pulsão desejante e potencial transformador.
O trabalho foi construído a partir de pesquisas qualitativas, envolvendo jovens atuantes de Porto Alegre, Recife, Rio e São Paulo, conversas em grupos, aprofundamento de hipóteses e análise geracional comparativa, com base nos códigos fixados pela indústria cultural a partir da 2ª Guerra, para chegar de modo contundente à pesquisa quantitativa, que foi aplicada nas classes A, B, C, D e E, com 1.784 entrevistas, feitas em 173 cidades de 23 estados brasileiros. Dos vários percentuais positivos resultantes, pode-se ver que 89% dos jovens pesquisados têm orgulho de ser brasileiros, 76% sentem que o Brasil está mudando para melhor e 87% veem o Brasil como um país importante no mundo de hoje.
Tomando como referência dados do IBGE (Censo 2000, com estimativa para julho de 2009), a Box calculou que no Brasil existem hoje cerca de 25 milhões de jovens na faixa entre 18 e 24 anos, dos quais aproximadamente dois milhões foram classificados por ela como jovens-ponte; aquele que “funciona como catalisador de ideias, gerando um novo tipo de influência, que se dá pela transversalidade”. Coloquei no debate a sugestão de mudança da metáfora para jovem-roteador, pois, diferentemente da simples ligação de pontos, com a finalidade de permitir a passagem por cima de si, o roteador tem a capacidade de interligar redes e de dinamizar o fluxo de dados, escolhendo o melhor caminho.
O maior sonho da juventude brasileira é a formação profissional e o emprego (55%). Mas para ser sonho mesmo os entrevistados realçam que querem mais do que fugir da síndrome da inutilidade; querem associar o trabalho à realização pessoal e comunitária, tanto que 74% sentem-se na obrigação de fazer algo pelo coletivo e 79% mostram-se dispostos a reservar parte do tempo para ações em favor da sociedade. O estudo faz uma importante ressalva, com relação a possíveis dissonâncias entre o que dizem e praticam os entrevistados: “Conectar-se com o discurso coletivo não significa necessariamente já estar agindo pelo coletivo”.
Ao mesmo tempo em que se nota uma vontade corditiva de praticar os seus sonhos percebe-se uma certa vulnerabilidade no ambiente de afirmação desses jovens que vivem uma fase de destacado poder de influência com relação aos mais novos e aos mais velhos. Quando dizem que topam agir com honestidade para ajudar a transformar o Brasil (56%) podem estar dizendo que esperam algum exemplo a seguir. Esse quadro da falta de papeis-modelo traz ainda como complicador o momento de vergonha democrática vivido no Brasil em decorrência da prática corrupta de muitos dos integrantes da geração anterior que hoje estão no poder e que em sua juventude levantaram a bandeira da moralidade social e política.
Reinaldo Pamponet, que desde 2003 dedica-se a projetos culturais envolvendo jovens, a exemplo da Eletrocoperativa e da Rede Itsnoon, declarou no debate seu ceticismo quanto ao propósito dos jovens-roteadores de agir pelo coletivo. Para ele, a regra gerada pela ausência de referenciais de liderança no país é a da criação de jovens-escada, aqueles que querem se dar bem de qualquer jeito. Defensor do modelo de sociedade em rede, acredita que o melhor caminho para o que chama de venda de subjetividades está na iniciativa privada, onde a agenda é mais clara do que no mundo estatal.
O estudo sobre o “Sonho Brasileiro” é desafiador porque revela um dilema entre o potencial de realização e a possibilidade de frustração de uma juventude que parece estar mais bem preparada para buscar um novo estilo de vida, menos corrosivo do que o modelo consumista atual, do que as elites econômicas, intelectuais, sindicais, religiosas, políticas e culturais do país. Além da reinvenção dos padrões de produção e consumo pelo capital da criatividade, 70% desses jovens, mesmo em situação de incerteza econômica, não querem abrir mão de uma atuação comunitária, preferencialmente nas áreas de cultura e arte (31%), meio ambiente (29%), educação (26%), esporte (25%) e tecnologia (19%).
Movido pelo extraordinário potencial dessa juventude em movimento e pela mina de felicidade bruta que existe por trás do “Sonho Brasileiro”, compartilhei com os participantes do debate no Itaucultural o conceito de “Cidadania Orgânica” que criei para traduzir essa força que emana da sociedade civil: “O cidadão orgânico é de um lugar, não de uma classe, e não precisa ser um intelectual, nem ter atuação partidária; age porque o todo lhe interessa, porque se sente parte do todo. É universal porque associa o futuro do planeta ao seu futuro e vice-versa (…) Aquele que tem uma experiência autêntica, para com ela existir de forma integrada à natureza, independente de ser viajado ou não” (Revista Fale!, p. 30, mar/2009).
As armadilhas existentes nas trilhas abertas pela nova geração de um novo Brasil, não são poucas. Em seu contraditório jeito de viver um tempo em que tudo está tão próximo, mas tudo parece correr em direção à inexistência, a juventude depara-se a todo instante com o fundamentalismo tecnológico, com o sofisma da visibilidade democrática, a pregação de falsas estabilidades jurídicas, a “desnoção” do público e com a falta de uma clara distinção entre os dois sistemas colaborativos vigentes: a) o que catalisa energias das pessoas para a dinâmica da coesão social e para a sustentabilidade; e, b) o que tem como fim a canalização do altruísmo da juventude para o barateamento de custos das corporações do mercado de conteúdos.
O estudo destaca uma compreensão dos participantes do projeto no sentido de que a cultura global não passa de um mosaico de culturas locais: “Jovens enxergam que a cultura global não anula as particularidades locais, mas, pelo contrário, cria um espaço mais amplo onde manifestações distintas podem dialogar e trocar”. Conversando com o Júlio César Oliveira, um jovem-roteador gaúcho, que participou do debate sobre Fusões Criativas, ele me falou da evolução que vem ocorrendo no hip hop, a partir da descoberta da abundância cultural brasileira. Nas oficinas que ele ministra tem sido comum o trabalho com música popular brasileira. Com isso, o hip hop vai deixando cada vez mais de ser apenas uma estética importada da periferia norte-americana para se integrar ao conjunto de expressões assimiladas e ressignificadas pelas cores da brasilidade. Este país eu conheço e nele me reconheço.