Sobre trabalho e orientação social
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, pág.3
Quinta-feira, 15 de Março de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O sentimento de que chegou a vez do Brasil no espaço econômico e político das nações é quase senso comum. A escalada na classificação de potências econômicas e as sucessivas articulações com blocos de países em circunstâncias assemelhadas de desenvolvimento demonstram que temos amadurecido.
Poucos países apresentam hoje condições de diversificação e de integração como o Brasil, com seu território continental, uma língua entendida em todo esse território, ainda sem graves conflitos étnicos e uma nova classe de consumo, configurando-se em um “mercado comum” sem par.
Essa relativa condição privilegiada do Brasil em um momento de crise internacional tem, contudo, suas vulnerabilidades. E uma delas, também já amplamente percebida é a falta de qualificação profissional para que o País possa encarar os desafios postos, de modo criativo e competitivo e para que as pessoas aproveitem as oportunidades que estão sendo colocadas.
Uma das grandes e perversas vantagens comparativas que tínhamos era um histórico de mão de obra barata e isso já não conta porque países como Índia e China desbancaram esse diferencial, oferecendo às corporações transnacionais condições de trabalho que conseguem ser mais precárias do que as nossas.
É um horror ter que admitir isso, mas não nos preparamos para estarmos capacitados profissionalmente para esse momento. Foi assim no período de escravidão, na acolhida aos imigrantes, na exploração da mulher no mercado de trabalho e, atualmente, com a escassez de trabalhadores com expertises em ciências básicas e engenharias.
A ausência de núcleos críticos, que pudessem influir na reversão dessa situação, faz com que corram soltas as conversas de inovação, preparação de talentos e prioridade nas pessoas. Na prática, seguimos sendo as consequências das nossas omissões e deformações coloniais, em suas passagens pelo significado da nossa rica e incomparável experiência de diversidade e adversidades.
Isso tem sido decisivo para que a questão do trabalho no Brasil ainda não tenha conseguido ultrapassar a noção de mão de obra. E, diga-se a tempo, de mão de obra barata. Não é à toa que o fluxo migratório dos países vizinhos tenha aumentado tanto. No lugar de decidirmos pagar melhor às pessoas, preferimos dar um jeito de substituí-las por outras, em situações mais difíceis de sobrevivência, como muitos bolivianos, peruanos, paraguaios, coreanos, africanos, haitianos e chineses sem escolaridade e sem qualificação que, com ou sem visto residem por aqui.
O compromisso do Brasil com a América do Sul passa pelo estímulo à integração e à criação de mercados atrativos regionais. Encontrar formas de resolver essa questão sem preconceito e sem demagogia seria melhor do que importar mão de obra. Por esse caminho, acabaremos cometendo um dia a lamentável atitude européia e norte-americana de, depois de usufruir do suor dos desterrados, chutá-los para fora ou construir muros para que não se aproximem.
Por outro lado, está a forte pressão de empresas para que o País facilite o visto de trabalho de estrangeiros qualificados, aproveitando a crise européia e estadunidense. O argumento é que muitos dos bons profissionais dos Estados Unidos e da Europa estão ansiosos por oportunidades de ganhar dinheiro no Brasil. O governo federal vem discutindo as formas de priorização desses talentos.
O que pode parecer uma repetição das imigrações do final do século XVIII e início do século XIX, quando milhões de famílias de trabalhadores europeus, japoneses e árabes, dentre outros, se integraram ao povo brasileiro, não passa de mais um arranjo pontual, que não resolve o problema. A inserção do Brasil no cenário global do trabalho não deve deixar de contemplar os brasileiros.
A questão nos leva a pensar sobre que modelo de participação positiva e proativa no mundo, poderia seguir a tradição do Brasil enquanto sociedade aberta e sempre disposta a incorporar as qualidades de estrangeiros, mas, ao mesmo tempo, assegurar uma escala doméstica de consumo popular e, para isso, a população precisa ter renda e, consequentemente, trabalho.
Estamos sem uma hipótese ambiciosa. Algo que saiba aproveitar o potencial híbrido de mercado interno com mercado externo, sem asfixiar o grande contingente de brasileiros que está boiando sem rumo em um mar de oportunidades. A ascensão das classes mais desfavorecidas ao consumo e os avanços na qualificação técnica são louváveis, mas, mesmo assim, passivos, sem uma orientação social mais profunda.
O mundo mudou e por aqui se continua demitindo como primeira ação de redução de custos, o que em outras palavras pode significar restrição no mercado consumidor. Tão suscetível de ironia quanto isso é o perfil de mero exportador de commodities atribuído ao Brasil numa caricatura que circula pelo mercado, segundo a qual a Índia é o call center, os Estados Unidos o shopping, a China a fábrica, a Europa o turismo e o Brasil a fazenda do mundo.
Faz bem pensar e trabalhar para que o Brasil seja realmente uma das potências mundiais de um novo planeta em construção, mas não uma potência econômica que não beneficie social e culturalmente os brasileiros. Para valer a pena, deveremos ser uma potência em biodiversidade, em tecnologias verdes e soluções criativas, que possua uma economia inspirada em nossa inventividade mestiça e em nossos preciosos ativos naturais. Somente com uma orientação social bem definida, teremos uma educação profissional e técnica com pessoas capazes de entender o que fazem, de interpretar dados, de decidir, executar, pensar soluções e inovar.
A única experiência abrangente de regulamentação do trabalho no Brasil, que superou o conceito de mão de obra, foi a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que, em 2013 completará 60 anos. Salvo remendos daqui e dali, não temos uma carta que atualize a arquitetura das atividades laborais. As demandas mudaram, as exigências são outras e os padrões também. Para nos garantirmos no jogo da geopolítica global, precisamos construir um novo sistema de trabalho, com base não apenas econômica, mas em uma orientação social, cultural e ambiental.
O senado federal aprovou no dia seis deste mês de março um projeto de lei (PLC 130/2011), ainda não sancionado pela presidenta Dilma Rousseff, que penaliza as empresas que pagarem menos a mulheres do que a homens, quando atuando na mesma função. Este é um bom exemplo de fato recente, envolvendo a exploração da mão de obra barata feminina, que sinaliza para a tomada de consciência dos agentes do sistema econômico diante dos novos parâmetros sociais estabelecidos.
Não tomo essas referências históricas de descaso para com o trabalho como lamentação ou busca de refazer o que passou. O que resta de tudo isso em nós é o que mais interessa. Os anos de escravidão, o recurso da imigração, a carta trabalhista de Getúlio Vargas (1882 – 1954), a presença desigual da mulher no mercado do trabalho e a escassez de trabalhadores qualificados para acompanhar a projeção econômica e política do Brasil no mundo multipolar, ainda estão refletidos em muito do que move o nosso presente.
O cuidado com o trabalho e com a finalidade do viver, passa pela ruptura da coisificação das pessoas e pela observância das relações com os conflitos da chamada “obsolescência programada”, seu lixo desnecessário de coisas inúteis, sua decadência valorativa e pela energia que as pessoas gastam para se defenderem dos abusos de empreendimentos desonestos, nas esferas comerciais, políticas e religiosas.