Solidariedade à brasileira
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 31 de Outubro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Quando há quase duas décadas o Cardeal Arns confiou à sua irmã Zilda a tarefa de estruturar a Pastoral da Criança, certamente antevia nessa médica sanitarista alguém com a força e a sensibilidade para tocar essa ação religiosa-cidadã, que está na lista dos indicados para o Prêmio Nobel da Paz de 2001. Cuidar da infância por trás dos bastidores do predomínio da ética econômica, para a qual o presente não passa do que restou do futuro, é uma missão um tanto quanto árdua, mas desafiadora. A história da Pastoral resulta da combinação de experiências verdadeiramente espirituais no istmo entre a vida e a morte. O resgate da consciência orgânica, da fé maternal e da intimidade comunitária, deixou de lado os caminhos tradicionais da caridade e da verticalização do conhecimento para acreditar nas soluções simples espalhadas em rede de voluntários.
As pessoas comuns, engajadas na ação fraterna da Pastoral, seguem suas atividades anônimas como se fossem fadas desencantadas a desacelerar o processo de mortalidade infantil brasileiro. São gestos de integridade, de alma desperta e apego coletivo que se impõem como espelho de um ser que tem como premissa básica viver em sociedade. Ainda temos disso. Ainda bate no peito de nossa gente um coração incansável que não aceita tanto ultraje cotidiano. Ainda estamos vivos o suficiente para negar essa espécie de pecado original às avessas, que é a sina da exclusão. Nascer é perigoso. Nascer pobre, então, é um desacato à autoridade do PIB e uma desfeita para com a renda per capta.
A grandeza dos agentes da Pastoral da Criança está exatamente na forma como eles se colocam diante das circunstâncias. Com altruísmo, racionalidade e intuição tropical, a experiência oferece uma amostra do muito que se pode criar de possibilidades para o tratamento de problemas graves, sem precisar fugir à nossa maneira de ser e pensar. Esse modo de fazer acontecer inspirou o surgimento dos agentes de saúde e revelou aspectos de grande relevância dos fatores ambientais de realidade local. As pessoas querem ser felizes e estão dispostas a construir essa felicidade sem, para isso, precisarem fazer qualquer pose de desenvolvidas. O desprendimento e o zelo pela integridade humana é, neste caso, mais importante do que o alarde estatístico feito por qualquer grife de “primeiro mundo” e pela propaganda governamental.
A ação espaço-temporal de cada universo específico, mas não unívoco, deriva na restauração dos laços comunitários, onde o exercício do afeto ocupa a faixa de inferiorização que os modelos externos disseminam. Com água, sal e um pouco de açúcar, faz-se o soro caseiro contra a desidratação; com caroços, cascas de frutas, sementes e outros alimentos desperdiçados, produz-se a multimistura para nutrir os corpos esqueléticos das meninas e meninos do Brasil da apartação. O trabalho da Pastoral é um Salmo prático, lírico e concreto, que de um lado vai plasmando solidariedade pelo respeito e, de outro, vai cerzindo as fibras mais sensíveis do nosso tecido social, fiadas na infância.
Em 17 anos de caminhada, dos quais 15 com atuação no Ceará, a Pastoral da Criança conseguiu colocar em cena uma práxis que superou os limites da caridade, ao ponto de permear o frenesi do individualismo modernoso com o fluido divino da nossa quase passional solidariedade mestiça. Ao centrar seu esforço em orientações preventivas, como o aleitamento materno, transgride em parte os códigos usuais da remediação. A função do peito é amamentar, embora em contexto expandido atenda especialmente aos apelos sexuais e estéticos das mulheres e dos seus parceiros. Mais do que alimentar, o leite materno enche a criança de anticorpos e facilita o seu crescimento com saúde. Preparando pais e mães para esse ato de carinho natural, os agentes da Pastoral promovem o sentido de proximidade e ensejam a tantas pequenas almas de corpinhos desnutridos a possibilidade de dispensar a morte indesejada logo nos primeiros anos de vida.
A muitas crianças do circuito renegado não é dado muitas vezes sequer o sórdido privilégio de definhar na companhia de familiares e vizinhos. Nem sempre há um parente inválido ou idoso para ampará-las na angustiante morte de fome e abandono. Pais desempregados, irmãos desempregados, amigos desempregados, desaparecem constantemente no teatro trágico das ruas e suas representações de violência explícita. O que chama a minha atenção no despojamento das pessoas que assumem o compromisso de multiplicar diferenças é a coragem de não se abater pela pauperização crônica. A sensação que dá é de uma crença voltada para o elo que o outro significa na corrente da vida. Com alguém para cuidar, para contar, para chamar de semelhante, mesmo nas condições mais adversas, somos inevitavelmente menos pobres.
Essa rede de solidariedade movimenta, somente no Ceará, mais de 2.700 agentes que propiciam esperança a uma média mensal de cinqüenta mil meninos e meninas. Fazem isso por fé. Fazem isso porque não se deixaram enfraquecer diante dos bloqueios de oportunidades. Fazem isso em troca da emoção impagável de cada olho infantil que influenciam para voltar a brilhar. Que personagens, hein? Tão dignos, tão heróicos, tão magnânimos! Pessoas que fazem das horas excedentes da luta pela sobrevivência a obra imensurável da existência compartilhada. Salve, portanto, essa gente de alma boa do Brasil profundo.