SUSTO – Com uma jiboia no travesseiro
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 158 (Editora Riso), págs. 20 e 21
Edição de maio de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Ao lado da casa em que moram meus pais há um galpão com três divisões. Na primeira, ele guarda um tratorzinho, que virou seu transporte depois que ele, ao completar 93 anos, resolveu deixar de andar de moto. Na segunda parte, ele guarda uma caminhoneta Ford 1974, com a qual circulava por exposições agropecuárias, levando carneiros e bodes para conquistar um sem-número de prêmios. Ele cuida bem deste carro porque quando morrer, se o motor pegar, quer ser levado para o cemitério em sua carroceria. Na terceira parte do galpão não há nada, quer dizer, há apenas uma rede de tucum permanentemente armada.

Pois bem, é nessa rede de tucum que ele costuma dormir o soninho dele depois do almoço, e é para ela também que ele vai quando está com raiva de alguém ou de alguma coisa que deu errado. O certo é que essa rede tem um valor enorme para ele. Como recomenda a sua idade avançada, ele protege um pouco o corpo com um travesseiro ao se deitar; quem conhece rede de tucum sabe que, por ser um entrecruzado de cordas, ela marca o corpo de quem nela se deita. No começo, meu pai levava o travesseiro cada vez que ia curtir um balanço à sombra da terceira parte do galpão, mas, com o tempo, foi relaxando e deixando o travesseiro por lá mesmo.

O lugar é agradável e, quando o calor está muito forte no sertão, aquele calor sem vento, que até na sombra é quente, ele tem um jeito de produzir uma aragem suficiente para o seu conforto. Amarrou uma corda em um terceiro armador, criando um ponto de apoio para puxar a corda com leveza. Assim, fica deitado com o braço na lateral da rede e com a mão puxando a corda no ritmo da própria respiração. Ali e daquela forma vai se embalando, embalando, embalando e dorme nesse vai e vem. Interessante é que mesmo dormindo ele segue o seu moto perpétuo da mão na corda, balançando, balançando, balançando e criando o vento necessário para aliviar o calor e dormir bem.

Isso virou rotina e, como toda rotina, caiu no esquecimento de quem, como eu, costumava perguntar a ele pela redinha de tucum. Até que um dia desses ele me ligou para falar da dita cuja. Logo que atendi ele foi perguntando se eu me lembrava da rede do galpão. Falei que sim e reafirmei o quanto eu acho formidável aquele cantinho organizado por ele para relaxar. Ele expressou um afetuoso contentamento pela minha lembrança e disse que tinha uma novidade para me contar. Não pude nem imaginar o que seria essa novidade e, depois que ele me falou do ocorrido, percebi que não tinha mesmo como fazer qualquer suposição.

Como é de costume, ele terminou de almoçar e foi para a rede de tucum. O travesseiro já estava lá, pronto para acolhê-lo. Ele passou uma perna por cima da rede, segurou nas fibras mais reforçadas das bordas e deitou-se com o seu tradicional ahhh! de alívio e manifestação de prazer. Embora o clima não estivesse tão quente, ele segurou a cordinha com a mão e começou a se balançar. Quando já estava cochilando, sentiu alguma coisa se mexendo dentro do travesseiro. Parou a respiração para aumentar a sensibilidade e percebeu que se tratava de uma cobra que estava dentro do travesseiro.

Pelo telefone ele foi me contanto da sensação que sentiu. Sabia que era uma cobra, mas não sabia que tipo de cobra. Olhava para os lados e não via ninguém. Já não conseguia controlar a respiração. E quanto mais ele aumentava a expiração e a inspiração, mais sentia a cobra se mexendo sob seu corpo. Soltou a cordinha e abraçou-se por baixo da rede, fazendo pressão para ela não se mexer. E ficou assim até aparecer o Manezinho, indagando o que era aquilo. Meu pai nem precisou explicar, visto que a cobra começou a sair pelo fundo da rede.

Foi tenso, ele me relatou, em um misto de ansioso para terminar de contar e contente por ter vivido aquela aventura, que teve seu desafogo quanto ele deu um pulo e se agarrou no punho da rede, enquanto o Manezinho puxou o travesseiro e o jogou longe, no terreiro da casa. Bem humorado, ele me disse que a essa altura da vida não esperava mais passar por um susto tão grande. Aproveitei para sugerir a ele que não deixasse mais o travesseiro na rede quando saísse, considerando que a cobra poderia voltar e, mesmo sendo uma jiboia, que não tem veneno, ela morde e até mata por aperto. No que ele retrucou: “Ah, meu filho, precisa, não; é só das próximas vezes eu olhar antes”.