Tchekhov para os dias de hoje
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 08 de junho de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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No primeiro momento, a aspereza da relação entre a viúva Helena Popova e Smirnov, o credor do seu finado marido, pode parecer coisa do passado na peça O Urso, do escritor russo Anton Tchekhov (1860 – 1904). Entretanto, o imprevisível amor nascido de uma situação de raiva e luto tem lá seus paralelos nos tempos atuais.

As aflições sociais no regime autocrático dos czares russos, no final do século XIX, repercutiram fortemente nos relacionamentos, como tem acontecido no mundo contemporâneo, perturbado pelo amor de mercado na sociedade do consumismo. Questões morais com motivações diferentes, mas com assemelhados efeitos visíveis de embrutecimento.

Faço esse tipo de ilação apenas como forma de dizer o quanto admiro as obras que têm o potencial de alcançar o humano em contextos e épocas distintos. A literatura russa tem essa força. Em O Urso, a perturbada e perturbadora condição dos personagens tchekhovianos, centrada na urgência de uma cobrança de dinheiro, estende-se a cobranças de virtudes como a sinceridade, a fidelidade e a constância.

Tive a satisfação de ver essa história curta de realismo crítico na encenação do Teatro Experimental de Cultura, no sábado passado (4), na Casa de Juvenal Galeno, em Fortaleza. O espetáculo, dirigido por Walden Luiz, tem em seu excelente elenco as atrizes Ecila Menezes, que faz a senhora Popova; Sônia Federico, a Anfissa, velha acompanhante da viúva; Gliz Paula, a criada Dacha; e o ator Cláudio Magalhães, no papel do credor Smirnov.

A montagem na casa de cultura que foi a antiga residência de Juvenal Galeno (1838 – 1931) é perfeita. Aquele casarão foi construído pelo poeta no ano de 1888, mesma data em que Tchekhov escreveu O Urso. Em vez de mudança de cenário, é a plateia que se desloca pelos corredores para assistir o desenrolar do enredo e suas expressivas passagens.

O palco do pequeno teatro foi transformado no quarto onde as criadas tentam consolar Popova da sua tristeza profunda pela morte do marido. Em ambiente sem iluminação artificial, como pede o teatro de Tchekhov, seguimos pelo corredor até a sala que dá acesso ao que seria a porta interna do quarto, e nos sentamos para assistir a chegada de Smirnov e sua rusga com a viúva, num duelo de corações travados em busca do reencontro com o desejo.

A beleza do mobiliário, os grandes quadros nas paredes e uma discreta luz de velas destacavam-se na intimidade do cenário enquanto o credor e a viúva esbanjavam gestos fortes e falas sem rodeios, como se os estivéssemos vendo por dentro de suas razões e emoções. Ecila, Sônia, Gliz e Cláudio trazem Tchekhov para os dias de hoje quando interpretam com maestria o que há de trágico nas circunstâncias corriqueiras das sociedades em crise de significados.

O escritor tinha um ano de idade quando houve a emancipação da servidão na Rússia. A mudança do campo para Moscou foi acompanhada de grandes dificuldades. Escapou vendendo escritos até se formar em medicina, quando retornou ao interior e teve a oportunidade de conviver também com pessoas de posse. O Urso foi escrito logo que decidiu abandonar a medicina para ser escritor. Fez isso por acreditar que somente na ficção se pode ser efetivamente verdadeiro. Nesse sentido, também nada mudou.