Teatro dos Zés e das Mazés
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº178 (Editora Riso), p. 18
Edição de janeiro de 2017 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Desde o dia 10/12/2016, quando assisti a uma aula-espetáculo do ator e dramaturgo Ricardo Guilherme sobre o Teatro São José, em uma tenda na Praça do Cristo Redentor, por ocasião da abertura do XII Festival de Teatro de Fortaleza, que reforcei em mim a convicção de que não vale a pena trocar o nome daquele equipamento para Teatro Municipal, como está anunciado que será feito em 2017, após a reforma em curso.

Ricardo Guilherme, com toda a propriedade de quem é parte de fato e de direito da história do teatro no Ceará, além de estudioso e pesquisador apaixonado do assunto, ilustrou sua apresentação com bem humorados causos de cearensidade, em um passeio de mãos dadas com a alma popular daquela casa e com o espírito de molecagem incorporado por ela em um século de muitas histórias.

O teatro pertence ao município, mas é um patrimônio dos fortalezenses e, se perder seu nome original, estará perdendo o que tem de mais forte, que são os vínculos com uma história riquíssima em fatos, feitos, nomes admiráveis e de uma grande atriz que fez parte significativa do sucesso dessa casa, que foi a plateia participativa dos seus dramas e comédias.

Ricardo Guilherme contou dos Zés e das Mazés que deram vida ao São José, inclusive com intervenções capazes de transformar em risada até a mais dura das situações. Foi o caso de uma das apresentações da peça O Mártir do Gólgota: no momento em que os soldados romanos eram destacados para prender o Filho de Deus, o ator nervoso, em vez de dizer que “Jesus está a 200 passos daqui”, disse “a 200 palmos”, no que um gaiato gritou da plateia: “Então o homem está dentro de casa!”.

O Teatro São José tem esse nome porque nasceu dos Círculos Operários Católicos nas primeiras décadas do século XX. Tem, portanto, um contexto e uma história que justificam ser chamado assim. É certo que existe hoje uma pressão religiosa que faz pouca distinção entre o que é uma simbologia cultural e uma imagem de concorrência no mercado da fé. Mas esse tipo de disputa não deveria interferir em um templo da arte.

Mudar o nome do Teatro São José tem ainda o agravante de revelar pouca ousadia da administração pública, na perspectiva de potencialização cultural da cidade. Para se tornar um entreposto com voz no cenário global, Fortaleza precisa tanto explicitar as memórias de seus equipamentos das antigas ruas de areia quanto avançar para ter um teatro municipal pensado e projetado pelo menos para fazer jus a sua influência regional.

Fazer com que o aconchegante São José receba o pomposo nome de Teatro Municipal enfraquece o relato da cidade, tira o eco, abafa o imaginário. Está na hora de Fortaleza acabar com essa mania de passar a borracha na memória para poder construir o novo. O Teatro São José, assim como a Praça do Cristo Redentor, deveriam, isto sim, ser preparados para a aproximação da arte e da literatura com a nossa vida cotidiana.

A fala de Ricardo Guilherme chamou a minha atenção para o curioso dado de como a população e os artistas que atuaram no Teatro São José conseguiram migrar de uma moral de época para um jeito próprio e atemporal de ser e interagir extra artístico, em atos de insurgência entre o palco e a plateia urdidos por uma aliança de subjetividades que confere sentido e valor especial àquele lugar.

O Teatro São José é um equipamento único, um lugar de cumplicidade social, um espaço que tem no jogo da oralidade instantânea o seu ponto mais forte. Por isso, mesmo quando fechado, nunca ficou vazio. Para estar sintonizada com os tempos atuais e firmar sua vocação cosmopolita, Fortaleza não deveria desprezar esses lugares tão cheios de peculiaridades. Mudar o nome do Teatro São José para Teatro Municipal é mudar sua alma. Não é razoável recuperar o prédio e demolir o teatro.