Timbuktu e as leis do deserto
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 28 de janeiro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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O filme “Timbuktu”, do diretor mauritano Abderrahmane Sissako, tem um discurso totalmente alinhado ao da grande mídia internacional que, diante da guerra entre adeptos do Deus-mercado e seguidores de Alá, procura mostrar de forma descontextualizada aspectos da agressividade de extremistas muçulmanos durante meses de 2012 e início de 2013, período em que dominaram áreas do norte do Mali, até serem banidos pelo exército francês.

Essa alienação do roteiro não tira, no entanto, a qualidade cinematográfica da obra, caracterizada por sensíveis coreografias de resistência, poética visual e som de blues do deserto. Gravado na aldeia Oualata, na Mauritânia, o filme trata de situações do abuso da força em sensíveis colagens de instantes. As cenas de apedrejamento, chibatadas e execuções levam o tempo suficiente apenas para o espectador sentir as contradições das penas.

O drama revela incoerências da coalizão de grupos fundamentalistas que conforme interpretações próprias das leis islâmicas passaram a aplicar condutas morais (sharia) no Azawad, território do norte malinês então controlado por um governo militar instalado no país por golpe apoiado pelos Estados Unidos. Situações como a de cobiçar a mulher do próximo e fumar, ao tempo em que pregam o contrário em suas doutrinações armadas (jihad).

A narrativa é pontuada por cenas de reações dignificantes: a mulher que se recusa a cobrir o rosto por estar em casa e não considerar bem-vindo quem não respeita sua intimidade; o tuaregue que antes de ser executado recusa-se a olhar para Meca, para dirigir o olhar rumo à tenda onde estão mulher e filha; a família que não cede a filha a um pretendente desconhecido; o religioso que avisa à milícia que mesquita não é lugar de armas; e a moça que canta enquanto apanha, como castigo por ter sido descoberta cantando em casa à noite com amigas e amigos.

A música “Timbuktu Fasso”, que quer dizer algo como dignidade timbuktuana, é uma bela composição do pianista tunisiano Amine Bouhafa, interpretada pela cantora e atriz Fatoumata Diawara, da Costa do Marfim. Fatoumata, que vive na França, integrou um grupo de mais de quarenta artistas do oeste africano para cantar um canto de paz pelo Mali, por ocasião da tomada do poder por parte do ajuntamento rebelde na região.

Foi no entorno de Timbuktu que surgiu o império do Mali, no século XIII, quando a cidade passou a ser conhecida como “O farol do Islã”, por sua importância como centro de sabedoria do mundo afro-muçulmano. Frequentada por comerciantes da rota trans-saariana e por pastores nômades do deserto (tuaregues), o lugar virou ponto de encontro de contação de histórias, música, dança e poesia.

Ao ver o filme de Sissako lembrei-me do clássico romance “Tuareg”, do escritor espanhol Alberto Vazquez-Figueiroa (L&PM, Porto Alegre, 2013), que conta a história de um beduíno e sua batalha para fazer valer o rigoroso e milenar código de honra do deserto. Em um trecho, ele escuta a queixa de um ancião sobre o século de dominação colonial do Mali: “Naquele tempo, de um lado estavam os franceses, do outro, nós. Agora lutamos entre irmãos (…) quando eles foram embora, dividiram os territórios, criaram fronteiras, separaram tribos, famílias…” (p.148).

Saindo do simples entretenimento e indo para alguma reflexão sobre “Timbuktu”, é importante pensar que por trás da violência dos rebeldes jihadistas há um perturbador fantasma colonial: “Os franceses dominaram os oásis e os poços (…) e os Filhos do Vento tiveram que se render ao seu maior inimigo: a sede (…) Amanheceu um dia em que nenhum camelo, nenhum homem, nenhuma mulher, nenhuma criança pôde beber no Saara sem a permissão da França” (p.16).

De um agente do governo francês, o tuaregue ouve o argumento de que os povos nômades precisam virar trabalhadores úteis, já que vivem em um mundo que tem petróleo e fosfato, entre outras riquezas. Os beduínos não teriam mais razão de existir, “assim como os índios da Amazônia e os peles-vermelhas norte-americanos” (p.133). É realmente complicado para um defensor do Deus-mercado entender que não se deve matar mais de uma gazela por caçada, simplesmente porque “nada devolve a vida de uma gazela morta inutilmente” (p.11).

No filme “Timbuktu”, um dos dramas apresentados é o de um tuaregue que vai tomar satisfação com um pescador que em um momento de proteção à sua rede de pescar mata uma das vacas do pastor do deserto. Na briga dos dois, que mais parece um balé de inocência, a arma do tuaregue dispara e o pescador morre. No livro de Vazquez-Figueiroa, parece mais claro “o quanto um homem do deserto é capaz de amar um animal do qual depende sua vida” (p.15).

O espectador de “Timbuktu” é testemunha de uma rotina de coações e afirmações de liberdade em um determinado lugar; já o leitor de “Tuareg” tem a sensação de que o deserto não tem fronteiras, pois, para o protagonista, ser livre é poder vagar pelas terras vazias, com a certeza de que ninguém pode evitar que o vento leve a areia de um lado para outro. As leis dessas histórias, independentemente de em nome de quem são aplicadas, são as leis do deserto, as leis dos mundos chafurdados e abandonados.