Em um disco com repertório de clássicos não é nada fácil escolher uma faixa para dar nome ao trabalho. A cantora mineira Titane, 57, optou por Paixão e Fé (Tavinho Moura / Fernando Brant) no seu velejar pela “agonia da barca dos homens”. Acompanhada pelo piano irrepreensível do também mineiro Túlio Mourão ela diz não à realidade aos pedaços de um país que necessita urgentemente lançar mão de seus sentimentos e crenças profundos.
Com a doçura e a extensão vocal de seu canto ela avisa que os pássaros não se calaram, que mesmo trinando dolorosamente muitos clamam e chamam pela sensibilidade perdida diante das tantas tragédias que têm soterrado princípios republicanos como o da segurança jurídica e o do bem comum. Nesse ato particular e espiritual da arte, Titane modula horror e beleza, como estado de relação com o meio circundante e o mundo, para fazer um álbum manifesto com tema, conteúdo, forma e significado.
Gravado em Congonhas do Campo (MG), em clima de sublimação barroca e reflexão crítica ao rompimento da barragem de detritos da mineradora que, em 2015, causou de uma vez só o maior desastre social e ambiental no Brasil, Paixão e Fé traz uma verve que espoca como bolhas na lama. Instiga e relaxa, ora quando nos abre os ouvidos à tragédia, ora quando nos leva ao interior da nossa alma as imagens da desgraceira, em choque com os encantos naturais e culturais da região afetada.
O capitalismo hediondo das mineradoras e as instituições de defesa dos interesses da sociedade não conseguem o mínimo de humanização em seus procedimentos reativos. A rudeza de quem comete e de quem acoberta esse tipo de prática criminosa não admite decência, pois, ao fazer isso, correria o risco de sentir a reprovação da natureza e dos flagelados na angústia úmida da calamidade.
Perante um cenário em que a arte está cada vez mais estorvada pela futilidade, o disco de Titane e Túlio Mourão chega com um ardor lírico pleno de subjetividades interpretativas, mas também de objetividade voltada à função social do fazer artístico. É bom apreciar um repertório que revolve palavras novas e palavras esquecidas, integrando termos no interior das letras e promovendo a cumplicidade dos sons por dentro das melodias.
Procuro ouvir a Titane como escuto o Abidoral Jamacaru ou a Tetê Espíndola. Não são apenas artistas admiráveis, são seres da metafísica. Assim como Abidoral traz em sua arte a potência futurista dos fósseis do Cariri, Tetê nos oferece sons da natureza pantaneira e Titane louva as águas curativas de Lagoa Santa, onde mora. Todos têm fontes originais radiantes e substanciais e, por isso mesmo, estão fora dos modelos estabelecidos para o que seria a fruição do belo.
O refinamento desse trabalho de Titane e Túlio Mourão conta com uma poética que se estende de Milton Nascimento a Chico César, passando pela criação das gentes simples do Vale do Jequitinhonha. Os versos de E Daí? (Milton Nascimento / Ruy Guerra) falam de “brilho de trinta velas”, de intestinos roucos e músculos poucos “pra essa rede de intrigas”, e de “gritos afro-latinos” que “implodem, rasgam, esganam”, em uma conjuntura de grosseria das não-respostas, representadas ironicamente pela desfaçatez do “E daí?”. E daí???