Trabalhar para ser feliz
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 02 de Setembro de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Os personagens são de regiões diferentes, contam suas histórias de maneiras diferentes, mas se assemelham no sentido da luta por terra e dignidade e no fato de contar há mais de duas décadas com o assessoramento solidário do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador, Cetra. Eis o foco do livro Terra feita de gente – uma história de emancipação social no Ceará, da jornalista Ana Naddaf, com fotos de Cláudio Lima. Uma publicação em que, para ser verdadeira, a autora evitou ser a dona da verdade, optando pelo composto de meia centena de depoimentos e pequenas reportagens autônomas e complementares.
É um livro que chega a tempo de contribuir para a reflexão sobre o sentido de destino do Brasil. Ao reunir expressões de lideranças populares e comunitárias cearenses, mostra com fatos e fotos que o vigor dessa gente vai além da situação de privações a que foi historicamente submetida. Neste caso, o Ceará é uma oportuna base de pesquisa, tendo em vista que os seus elevados índices de concentração de poder e de renda mantêm incisiva perenidade às figurações mais rígidas dos padrões culturais de dominação.
Os personagens do livro de Naddaf arriscaram combater condições desiguais e deram passos concretos e significativos nessa direção, embora ainda manifestem fragilidades com relação aonde queriam ou querem chegar. A dimensão ética do futuro, reclamada por esses trabalhadores e trabalhadoras, parece sofrer as tentações do comodismo da conquista da terra. A maior dificuldade provocada por quem obtém esse tipo de êxito recai no processo de transfiguração cultural da condição de subordinado para o pensar com autonomia, para a prática da produção com solidariedade, para o exercício pleno da cooperação e a vontade de trabalhar para ser feliz.
Ao longo do tempo as mais diversas culturas acentuaram traços inerentes à razão do trabalho e da produção de bens materiais e imateriais. Produzir riquezas, independente das condições de trabalho e de quem seriam os beneficiários, já foi uma obrigação divina. Depois, as pessoas se viram como peças das engrenagens de produção em série e passaram a confundir a operação da vida com luta por emprego. De redução em redução, os parâmetros da existência confluíram a uma situação vexatória, onde o outro se tornou em inimigo potencial num mundo de competições exageradamente desproporcionais. Em linhas gerais, essas amarras de compreensão constituem um leque de obstáculos difíceis de transpor, mesmo com a falência dos seus princípios de autoridade.
Os personagens reais, da vida real retratada em “Terra feita de gente”, descobriram que viver e trabalhar é ir de encontro ao outro e fortalecer os vínculos comunitários para poderem identificar carências comuns, aspirações comuns de superação de insuficiências e olhar juntos para os horizontes de construção do que há de acontecer, até onde a vista e os sonhos podem alcançar. Suas falas exprimem a percepção de que tudo é uma questão de luta. A vida é uma questão de luta cotidiana. Lutar é político, labutar é econômico. Usufruir com dignidade dos frutos da luta e do trabalho é uma questão de justiça. Muitos foram assassinados por terem descoberto que tinham direito e nada mais.
Nesse ambiente mesclado por sentimentos de injustiça e de esperança em ação, o Cetra aparece no livro de Naddaf como o próprio símbolo que o representa: um ovo de galinha caipira, em forma de globo terrestre, com os hemisférios invertidos e a América do Sul desenhada ao norte. E um ovo é sempre uma promessa da vida de libertar do próprio âmago um novo ser que se desenvolve pacientemente até ter força para quebrar a casca e sair para correr mundo com as próprias pernas. Mas isso só é possível quando há fecundação. E a fecundação é a consciência política, a consciência de si mesmo, do patrimônio coletivo e da necessidade de conhecimento dos mecanismos de produção e comercialização em referenciais solidários. Política, economia e cultura como forma de fugir da alienação para o encontro com os anseios reais das pessoas e das comunidades.
Nas páginas de “Terra feita de gente” encontramos os rastros firmes da equipe do Cetra trabalhando noções do direito em planos acima da carência e do interesse individual; trabalhando situações conflituosas através de práticas transformadoras, de meios legais, da compreensão do público e da consolidação do processo democrático. Uma caminhada de aprendizagem compartilhada que evoluiu da resistência na questão agrária, indígena e do sindicalismo rural, para políticas de afirmação em favor de temas como Terra, Água e Agroecologia; Educação e Ação Ambiental; Gênero e Cidadania e Socioeconomia Solidária. Tudo isso tendo como suporte essencial os olhares, as rugas, as mãos calejadas e os desejos, ainda que difusos, de produção da felicidade individual e coletiva.
(*) O jornal publicou este artigo com o título “Retratos da vida real”