O dia estava chuvoso em Fortaleza naquela manhã de dezembro de 2023. Parado em pleno calçadão da avenida Beira-Mar, um homem de aparentemente 36 anos falava sozinho, enquanto gesticulava em direção a três esculturas de camelos dispostas no principal ponto turístico da cidade. Notei que ele nem se dava conta de que aquilo se tratava de uma lapinha com figuras em tamanho real, uma vez que seu incômodo era com o contrassenso daquela decoração.
Descobri que seu nome era Manoel Francisco de Carvalho e que, por ser um cearense imaginário, criado pelo engenheiro e naturalista mineiro Guilherme Capanema (1824 – 1908) para assinar as crônicas satíricas “Os Ziguezagues”, que escrevia no Diário do Rio de Janeiro em 1860, ele segue bem vivo, ironizando decisões oficiais quadrúpedes no Ceará. Não foi à toa que um vício público, envolvendo camelos, abalou a reputação da expedição científica que registrou a fauna, a flora e aspectos topográficos e de costumes cearenses.
A Comissão Científica de Exploração das Províncias do Norte (da Bahia para cima tudo era Norte) privilegiou o Ceará como um dos lugares que deveriam ser melhor explorados pelo Brasil imperial. Na ocasião, foram importados da Argélia 14 camelos que deveriam ser testados como substitutos de burros e jumentos no transporte de cargas pelo sertão. Entretanto, aproveitando que os membros da expedição estavam viajando pelo interior, o então presidente do ‘Siará’, Antônio Marcelino (1823 – 1899), agiu como agem os maus governantes na trama do público com o privado.
Os camelos importados foram doados a dois dos seus apoiadores, um de Quixeramobim (Pinto Mendonça) e outro de Sobral (Paula Pessoa), que tinha fazenda em Canindé. No livro “Catorze camelos para o Ceará” (Todavia, 2021), o jornalista gaúcho Delmo Moreira conta que experiências semelhantes foram adotadas pelos Estados Unidos, no estabelecimento de uma rota entre Califórnia e Novo México, até a chegada do trem, e, na Austrália, como transporte nas obras de linhas de telégrafo e na construção da Ferrovia Transaustraliana.
Como no Ceará os camelos foram desviados das suas finalidades públicas e só Alá sabe ao certo o paradeiro dos quatro cuidadores norte-africanos que vieram acompanhando a cáfila por conhecerem o manejo desses animais, o teste de aclimatação foi considerado um fracasso. Agora, três deles reaparecem alegoricamente em plena avenida Beira-Mar como um idiossincrático apelo turístico e religioso, repetindo arbitrariamente a desorientação entre preferências confessionais e obrigações laicas da gestão pública frente à diversidade de crenças.
Este tipo de intervenção urbana, realizada com recursos arrecadados da coletividade, vai dia após dia sendo percebido como ofensivas à cidadania. Do contrário, o poder público precisaria ter um calendário de destaques afins para as várias manifestações religiosas. Sem contar que uma capital como Fortaleza não deveria se expor com algo tão esteticamente ultrapassado e provinciano, como é comum acontecer em algumas cidades do interior, que ainda colocam Papai Noel e bonecos de neve gigantes ao sol quente na entrada da cidade.
O espírito natalino pode ser expressado publicamente de muitas maneiras. A árvore de Natal de tecido branco esvoaçante, simbolizando a rede de dormir e a vela de jangada, como tem sido feito nas praças do Ferreira e Portugal, é Natal, mas é cultura; da mesma maneira que a árvore de Natal dos shoppings, com representação de pinheiro e decoração vermelha de marca de refrigerante, também é Natal, mas é comércio. Agora, o que reacende o espírito indignado de Manoel Francisco diante dos três camelos na Beira-Mar é o desgaste que essa mal-apresentada situação bíblica pode causar à imagem cosmopolita de Fortaleza. É Natal, é, mas vamos combinar, aquilo é uma presepada.
Fonte
Jornal O POVO