Três irmãs e o sentido da vida
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 18 de Março de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na sucessão dos dias, na proporção que for, não há quem passe sem uma combinação de expectativas entre passado, presente e futuro. A peça “As três irmãs”, do escritor e dramaturgo russo Anton Tchekov (1860 – 1904), em cartaz no teatro Sesc/Senac Iracema, numa montagem do Grupo de Estudos e Trabalhos em Stanislavski, GETS, expõe a intimidade da vida social e os conflitos de uma família russa na passagem do século XIX para o século XX. Composto por 14 bons atores e boas atrizes e dirigido pela inquieta e criativa Graça Freitas, o espetáculo mescla diferentes personalidades em uma história de convivência entre a nostalgia, a tristeza e a esperança.
As três filhas de um general, que morrera um ano antes, se relacionam com oficiais do destacamento militar de uma cidade do interior, com quem falam sobre coisas banais, com quem flertam e em quem depositam muitas das suas expectativas de retornar a Moscou, onde passaram a infância. Olga (Ecila Meneses), a mais velha, representa o esforço de felicidade pela recordação do passado; Macha (Maria Vitória), a do meio, simboliza a angústia de quem se prende apenas ao presente, desejosa de esquecer o passado e sem esperar muito do futuro; e Irina (Christiane Góis), a mais nova, que procura ser feliz, sustentada na possibilidade que imagina ter de um dia encontrar seu amor desejado na capital soviética.
A encenação atual de “As três irmãs” é muito oportuna enquanto paradigma do pensar a pessoa e a relação humana com a vida, em um momento que simulações televisivas como o Big Brother fazem amplo sucesso, como síntese do colapso social melancólico e aviltante da parte de quem faz o programa e da parte de quem o assiste. Torna-se, portanto, bem apropriado comparar a decadência de um século atrás com a decadência dos dias de hoje, embora para isso seja conveniente dar todos os descontos que precisam ser levados em consideração ao colocar lado a lado o descrever literário do autor russo e a intimidade explícita do caráter comercial dos “reality shows”.
A montagem tem uma dinâmica toda especial, com os personagens e não os atores modificando o cenário da casa, em tropo mobiliar que segue a evolução dos fatos pelos quatro atos, em rápidas duas horas e meia de crônica psicológica de asfixia provinciana, paixões irrefletidas e esperanças vãs. Nesse exercício dramático da dificuldade de fazer alguma coisa acontecer ante a fadiga do questionamento contínuo do sentido da vida, saltam às emoções da plateia a força da qualidade interpretativa individual e coletiva do elenco. Todos parecem ter amplo controle sobre si mesmos, nos papeis que representam, no domínio do palco e no entrelaçamento da trama, mas fiquei especialmente encantado com a atriz Christiane Góis, que faz a sonhadora Irina.
Irina gosta de falar da sua felicidade imaginária plantada no futuro; uma felicidade projetada pela vontade de ser mais intensa, pelo ardente desejo de amar, longe das induções circunstanciais, das conveniências e da necessidade de sobreviver. Ao contrário do velho excêntrico Tchebutikin (João Antônio), que nunca quis fazer nada na vida, simplesmente por não acreditar que existe, Irina acredita que trabalhar é uma forma de combater o tédio, de se sentir útil, embora sua experiência no telégrafo não seja das mais animadoras. As variações entre os estados de fascínio e de frustração dessa personagem são precisas na interpretação envolvente de Christiane.
A atriz dá um show à parte nos momentos em que Irina percebe a ruína dos seus sonhos; nos momentos em que ela fica aflita por achar que as três irmãs ficarão sozinhas caso não sigam com os oficiais que vão embora; nos momentos em que ela se dá conta de que não vai ser possível mudar para Moscou e que, assim, já não terá como encontrar o seu amado; nos momentos em que ela aceita casar com Tuzenbach (Magno Carvalho), o Barão, como uma hipótese de fuga; e nos momentos em que ela sabe da morte do Barão em um duelo com Solioni (Murillo Ramos), um piadista confuso e solitário, que rivaliza pelo seu amor.
Mais contida em suas emoções, pela responsabilidade de agregadora familiar que assume com a ausência do pai, Olga é um olho que ajuda a plateia a observar a transversalidade da peça em toda a sua extensão social e emotiva. Ecila Meneses faz com muita maestria o papel sutil de quem está sempre tentando compreender, cuidar, consolar e oferecer as condições mínimas para que todos se sintam bem, mesmo diante das angústias renitentes ao seu redor. Com seu caráter generoso, Olga tenta liderar uma situação caótica, porém, dentro do seu esforço para se conformar com a vida, mostra-se muito frágil diante de intromissões como a de Natacha (Aline Silva), a afetada e metida mulher do seu irmão Andrei (Carlos Onofre), que passa a dar ordens na casa, inclusive maltratando os criados, coisa que ela não concorda, mas tem dificuldade de desautorizar.
O irmão das três irmãs, Andrei, tem muito talento, toca violino e é uma das esperanças das mulheres da família Prozorov de tornar-se professor universitário em Moscou e levá-las com ele. Não dá certo. A expectativa é frustrada quando ele aceita um cargo de membro do Conselho Municipal e casa com a mandona da Natacha. As relações de Andrei com Natacha são tão conflituosas quanto as de Macha com o marido Kuliguin (Diego Landin). A propósito, a personagem interpretada por Maria Vitória não suporta o marido, canta músicas tristes, tenta romper com o vazio do presentismo na busca de uma suportável relação a dois. Acaba tendo uma atração sem consequências com Verchinin (Rodger Rogério), um oficial que fora conhecido como “o major apaixonado”.
O ator e compositor Rodger abre o espetáculo tocando e cantando a música Roda Viva, de Chico Buarque, a título de preâmbulo à atemporalidade da obra. No papel de Verchinin ele ilustra as conversas com tons filosóficos compartilhados com Tuzenbach. O primeiro, pessimista com o presente, coloca-se à favor do esquecimento para que o futuro chegue melhor; o segundo, acredita que no futuro aas pessoas dirão que a vida deles é que foi boa. Verchinin tem um pouco mais de papo e pretende não demorar muito para voltar a Moscou. Por esses e outros atributos, as três irmãs arrastam as asas por ele, principalmente Macha, que encara a atração de frente até se decepcionar com a retirada do amante, que vai embora com a mulher e os filhos e ela fica mais aborrecida e sozinha.
A diretora Graça Freitas faz uma movimentação bem ordenada da entrada e saída de vários outros personagens, reforçando a vitalidade do ambiente de cena. A criada Anfissa (Mazé Figueiredo) que, mesmo cansada procura encontrar forças para fazer a casa funcionar; o mensageiro surdo Ferapont (Thiago BC), que está sempre aproveitando as oportunidades para colocar na roda histórias fantasiosas; e o compulsivo fotógrafo Fedotik (Leonardo Costa), que perde a máquina em um incêndio ocorrido na cidade, servem bem a várias situações de linhas e entrelinhas do realismo psicossocial de Tchekhov.
Ao falar da peça, a atriz Ecila Meneses é taxativa ao afirmar que o teatro de Tchekhov é para ser assistido captando cada respiração do ator, lendo seus gestos mínimos e, principalmente, aprendendo a ler o que diz o seu olhar. E foi assim que procurei ler “As três irmãs”, na recomendável montagem do GETS, que esconde sentimentos profundos por trás de supostas tolices. Olga, Macha e Irina seguem existindo em nosso cotidiano, a despeito de não saberem exatamente para que vivem.