Um clássico sobre o mito Pe. Cícero
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Muitos são os livros de referência sobre o Padre Cícero. Como toda figura em torno da qual se desenrolam grandes acontecimentos, sua imagem é marcada por um sem-fim de polêmicas. Assim, a literatura que dá conta desse fenômeno cultural nordestino tende a variar no escopo entre religião e política, pelos extremos da veneração e da acusação de caudilhismo.
As abordagens sobre o tema tratam o mito ora como precursor da Teologia da Libertação (“O padre Cícero e a opção pelos pobres”, Neri Feitosa), ora como representante do coronelismo sertanejo (“O político Pe. Cícero”, Maria Laudícia Holanda), e em crônicas de olhar local (“Joaseiro Antigo”, Otávio Aires de Menezes) e reportagem biográfica (Pe. Cícero: poder, fé e guerra no sertão”, Lira Neto). Todos com muito valor em conteúdos e angulações.
Assuntos correlatos, envolvendo pessoas da relação pessoal e histórica de Cícero, também animam o debate. É o caso das histórias do seu secretário particular Benjamin Abraão (“Entre anjos e demônios”, Federico Pernambucano de Mello) e da beata Maria de Araújo (“A mulher sem túmulo”, Nilze Costa e Silva). Entretanto, há uma obra que se pode chamar de o livro dos livros sobre Padre Cícero. Trata-se de “Milagre em Joaseiro”, de Ralph Della Cava (Companhia das Letras, SP, 2014), cuja 3ª edição foi lançada na quarta-feira passada (19), na livraria Cultura, em Fortaleza.
O livro do historiador nova-iorquino traz uma interpretação ampla e bem tecida do fenômeno de Juazeiro, destacando-se pelo distanciamento das rusgas regionais e pela inteireza com que contextualiza fatos e ficções. Grosso modo, sua ruptura epistemológica caracteriza-se pela consideração ao relacionamento sistêmico do padre Cícero com o todo, e não apenas com aspectos da religiosidade e da política. Daí a extensão do ciclo dessa obra, que renasce a cada edição.
Della Cava trata o povo da Juazeiro do Padre Cícero como um coletivo inventor de novas formas de sociabilidade, de liga econômica e de um especial fazer político. O episódio da hóstia que sangra na boca da beata, responsável pelo tropo do “milagre” que aparece no título, funciona como um vórtice dinamizador da circularidade do fenômeno como tema brasileiro descolado de extensões oficiais da história.
A qualificação fundamentalista desse movimento de inspiração sociorreligiosa e política significa, para o autor, uma grave distorção dos preconceitos e estereótipos da tradição letrada. Observar Juazeiro apenas como “centro de fanatismo religioso” é subestimar suas importantes transformações políticas e econômicas (p.151). Com esse pensamento aberto, Ralph Della Cava transformou o objeto de sua tese de doutorado em uma história cheia de universalidades, mas, antes de tudo, fincada na cultura local.
O livro “Milagre em Joaseiro” foi escrito quando a Juazeiro do Padre Cícero tinha saído da condição de “povoado de encruzilhada” (por volta de 1865) para ser uma cidade com 80 mil habitantes e uma das mais importantes do interior do Ceará nos anos 1960. Passados cinquenta anos, a cidade chegou a uma população de 250 mil pessoas, sem contar que, com a conurbação da Região Metropolitana do Cariri, esse número pode dobrar. A pujança de Juazeiro faz com que a cidade seja a única do interior cearense a contar com voos regulares de empresas aéreas comerciais.
Com narrativa de inserção e de proposta de uma nova agenda para as formas de pensar e se relacionar com o fenômeno juazeirense, o livro estimula a reflexão sobre as circunstâncias históricas em que se desenvolveu o mito de Cícero. Evidencia-se em suas páginas a compreensão de que ninguém vira uma lenda sozinho, por virtudes absolutas, em que pese, neste caso específico, a determinação individual de cunho visionário do padre Cícero de reconhecer e potencializar os saberes do povo.
Na apresentação da terceira edição, o professor Diatahy Bezerra de Menezes destaca pontos essenciais do livro de Della Cava e sua disrupção em um cenário onde o mapa cognitivo do Brasil se resumia a Norte e Sul, Litoral e Sertão. Ele realça a migração para o domínio da história de um tema preso à “hagiografia” e à “demonologia”. Ressalta ainda o tratamento de movimento popular sobrevivente à repressão da Igreja e do Estado dado pelo autor, e salienta que a obra de Della Cava dá corpo à ideia e ao conceito de regionalismo.
O autor realmente surpreende no que oferece de percepção multicasual, o que possibilita uma leitura de respostas a nuances que dão volume e intensidade ao mito. Quando ele afirma que a composição de peregrinações teve em sua heterogeneidade social “muitos romeiros que eram trabalhadores rurais, vaqueiros e rendeiros desprovidos de terra, e uma irregular dispersão de artesãos (…) e que comerciantes, educadores e advogados foram para lá por motivo de ordem comercial, profissional e política” (p.158), ele faz com que o imponderável ganhe sentido, os mistérios tenham seus motivos humanos e a narrativa histórica seja mais do que uma resenha do passado.