Um dia no Reino da Garotada
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 02 de Julho de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
No centro da região do Alto Tietê, em São Paulo, existe a cidade de Poá. E no centro da cidade de Poá existe um lugar chamado Reino da Garotada. Poá é conhecida por ser uma estância hidromineral, pela estrada de ferro, pela exposição de orquídeas e pelo Reino. E o Reino é conhecido por suas torres de arquitetura holandesa, por sua extensa área verde contínua e por ser um respeitado e tradicional centro de formação de crianças, adolescentes e adultos. Poá tem 60 anos de emancipação política de Mogi das Cruzes e o Reino tem 65 anos, desde a sua fundação como internato, pelo padre Simon Switzar (1905 – 1970). A história dos dois se confunde no espaço e no tempo.
Hoje, Poá, que tem 111 mil habitantes, se orgulha de ter o mais elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região e o Reino da Garotada, com atendimento atual a cerca de 1 mil pessoas, se orgulha de ter contribuído muito para isso. O Reino deixou de ser uma instituição da igreja para se tornar uma organização da sociedade civil, com creche para crianças até seis anos, um centro de juventude para estudantes de 7 a 13 anos e oficinas de capacitação profissional para jovens de 14 a 17 anos. Além disso, desenvolve, para os adultos da cidade, oficinas que vão do tear à informática.
O Reino da Garotada está imprimindo mais dinâmica cultural em seu novo processo formativo e de sociabilidade, aproveitando ao máximo o patrimônio construído ao longo de sua história. Tanto que vem potencializando o Ponto de Cultura “Memórias do Olhar”, implantado em suas instalações, em 2008, com o apoio do Ministério da Cultura. Com este espaço de preservação, produção, divulgação, reflexão e transformação, por meio da fotografia e do vídeo, os poaenses passam a ter mais um atrativo para freqüentar o Reino da Garotada, nessa ampliação do seu caráter assistencial para o patamar de instituição social e cultural.
A intensificação da ação cultural no Reino da Garotada está abrindo uma nova frente de aproximações, que é a de convidar autores para conversas com crianças e educadoras no espaço de biblioteca que eles chamam de “Jardim Literário”, por ser realmente um cantinho entre árvores e flores. Tenho a satisfação de ser o primeiro autor a ser convidado pelo Reino nessa fase renovadora que se inaugura. No passado, as atividades culturais no Reino chegaram a produzir a gravação de elepês no Rio de Janeiro, com o seu coral de crianças regido pelo maestro Guerra Peixe (1914 – 1993).
Passei todo o dia da última sexta-feira, dia 26, no agradável ambiente do Reino da Garotada. Estive em cada uma das suas instalações, na padaria, na movelaria, na oficina de instalações elétricas, na sala de confecções, enfim, almocei com eles no refeitório e tomei mungunzá doce (que eles chamam de canjica) com as crianças da creche. Evidente que não tenho a pretensão de em um dia de visita, de convivência, querer ter entendido uma instituição e suas competências comunicativas. Mas fiquei muito bem impressionado com a interação das pessoas, adultos, adolescentes e crianças, naquela estrutura de intersubjetividades.
O Reino da Garotada tem ares de mundo infantil integral, de espaço onde a liberdade imaginativa é considerada na construção da subjetividade e do repertório comportamental, em uma ação educativa exercitada com base no respeito à figura do outro. As crianças do Reino, prioritariamente as mais socialmente desfavorecidas da região, têm a oportunidade de frequentar um ambiente informacional bem contextualizado na vida comunitária e ao mesmo tempo habitar o universo simbólico da infância, como se morassem dentro de um livro e pudessem passar as próprias páginas.
Por se movimentar simultaneamente com e por todas as faixas etárias, o Reino é mais do que um centro de formação. É um campo de integração, de disciplina, de autoconhecimento e de produção. Enquanto as crianças brincam, os adolescentes se organizam para jogar futebol ou para ver a sessão de vídeos alternativos no cineclube e os adultos discutem as imagens a serem trançadas nas tapeçarias. Todos ali são papéis-modelo, se é que isso é possível. Digo isso, porque a experiência do Reino sugere que o lugar de destaque social está na função de cada um e na forma espontânea como todos interagem.
Ao mesmo tempo em que a criança está dentro de uma dinâmica multi-etária e multifuncional ela é orientada pelo que está vivendo enquanto criança. Não parece haver a neura da antecipação do adulto que ela será. As particularidades da infância, da adolescência e do mundo adulto se potencializam por simples senso de reciprocidade. Esta vivência na complementaridade tira da criança o peso da indesejada sensação de morrer de véspera, sensação imposta pelo paradoxo de que para se tornarem adultos meninas e meninos devem se submeter à morte ontológica da infância.
No Reino, não há os suficientes e os insuficientes, todos em qualquer idade têm um potencial a ser desenvolvido permanentemente. Em seu “Pequeno calendário colorido para os que sabem ler o tempo” (Zé do Livro, 2009), Edson Natale diz que “as vezes as pessoas não são como são e sim como podem ser”. É o que se revela nessa experiência de Poá, onde as crianças crescem no convívio de adolescentes e de adultos, não para imitá-los, mas para continuarem sendo o que são na construção do desenvolvimento de todos. Isso faz do Reino da Garotada um espaço de compreensão da cultura do desenvolvimento contínuo. E uma situação que aproxima, imbrica e respeita as características das diferentes fases humanas me parece ser uma boa chave para a educação.
Tenho visitado escolas públicas, onde “estudam” crianças vítimas da pobreza, que regularmente utilizam grades de ferro nas portas das salas de aula. É deprimente encarar a jaula escolar, essa extremada solução encontrada pela racionalidade do confinamento como “proteção”. Por isso, vejo com bons olhos o sentido de proteção, quando ele é configurado no conceito de pertencimento e de aconchego. No Reino, a criança é pessoa, sujeito direto e não apenas indivíduo. E sendo pessoa, tem a prerrogativa de exercitar a cultura da infância em toda a sua extensão lúdica, imaginativa, de relação com a natureza e, sobretudo, de poder falar a linguagem da brincadeira.
As crianças do Reino existem concretamente como parte de um grupo social, em estado de aprendizado, vivência e produção comum de sustentabilidade. É importante realçar que as contribuições oficiais para a manutenção da instituição não chegam nem a vinte por cento, o que dá a todos os que acreditam no projeto a responsabilidade de cuidar da sua existência. Isso significa zelo constante e, mais do que isso, significa que é preciso participar. Educacionalmente essa distinção participativa me atrai, porque o comprometimento das pessoas não se dá por um discurso e sim pela prática da convergência de interesses comuns.
Todas as experiências são voltadas ao aprendizado de interdependência, no qual as crianças se envolvem com o que interfere em suas vidas. No Reino, as crianças não existem apenas como garantia de que haverá um futuro. Elas existem no presente, influenciando e sendo influenciadas no plano social. Meninas e meninos entram em cena como crianças, ampliando as possibilidades do fazer juntos, do tecer a vida coletivamente. O compartilhamento da produção simbólica com as representações do mundo adulto, tanto nas atividades corriqueiras quanto nas esporádicas, sinalizam para uma educação que vai além da razão instrumental.