Um filme sobre a inventividade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 08 de Fevereiro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Nirton Venâncio está fazendo um documentário sobre o processo produtivo de brinquedos, telas e esculturas de Antonio Jader Pereira dos Santos, o Dim. Já rodou parte das filmagens em Camocim, onde nasceu o artista plástico, e está preste a finalizá-lo em Pindoretama, onde vive o protagonista do seu novo filme. O encontro de Nirton e Dim é uma felicidade para a arte, por coesionar a linguagem cinematográfica poética de um com a expressão de ludicidade implacável do outro. O roteiro evita o documentário clássico e faz muito bem, pois Dim é um artista por si ficcional, e Nirton, um ficcionista convicto.
A obra do Dim está impregnada pelo imaginário da nossa cultura popular porque ele é autor, personagem e transfigurador dessa cultura. Em cada trabalho que faz manifesta um aprendizado por decorrência do qual tudo sempre fica novo quando se inventa um jeito novo de brincar. É o devaneio com que encara a vida que o leva a dar vida aos objetos que toca. Dim é um Midas da fantasia. É encantadora sua motivação de recriar brinquedos e brincadeiras. Cada peça que produz é um exercício de travessia pelas fronteiras da mente e da liberdade criativa.
Por mais obscuro que pareça o cotidiano, ele consegue traduzi-lo pelo avesso, com cobras enlaçando árvores de rói-rói, crianças aladas, famílias de João-teimoso, arraias e tapeçarias de corais. Tem sol raiando a todo instante em sua arte feita com todo tipo de sobra, de refugos de carpintarias a resíduos desenganados de isopor. A genialidade do Dim está fora do padrão porque a força da sua cultura espontânea não permite que ele seja enquadrado apenas como artesão nem simplesmente como artista plástico convencional. Ele é um criador deliberadamente autêntico e isso o impulsiona a viver e a fazer arte como se estivesse fora de lugar.
Com esse exercício de reconstrução da realidade, por meio da descaracterização inventiva dos padrões estabelecidos, a arte do Dim contribui para ativar o campo do nosso cérebro por onde trafegam nossas lembranças do passado e por onde se projeta o nosso sentido de destino. Faz isso quando a atração por modalidades de brinquedos e brincadeiras, com raízes no passado, toma corpo e revela-se em busca desejos futuros, confirmando a sentença popular de que é brincando que se aprende a viver. A obra do Dim nos põe a caminhar por uma ponte que nos leva a nós mesmos, que faz aparecer o que o nosso medo intelectual e a nossa subserviência consumista ocultam.
Está na cara, no jeito e no efeito do que ele faz. Dim é um rompedor da cultura do confinamento e do simulacro. Movido por um potente espírito investigativo salta do real para o imaginário como só em devaneio se poder ser tão veloz e mutante. A vida cotidiana se transfigura em estado onírico nas suas pinturas, esculturas e brinquedos. Obras de inesperadas revelações, que por si negam o mundo de imagens insubstanciais que ocupam o ambiente homogeneizado da contemporaneidade.
A subjetividade em Dim se expressa na forma de ardentes figuras da cultura popular, mas não se limita a elas. A noção de jogo (como tempo e espaço de invenção da realização essencial e não como sistema de regras determinantes de perdas ou de ganhos) está presente em seu trabalho pelo viés de entranhados valores culturais, enriquecidos pela percepção individual da linguagem imagética que ferve no inconsciente criador. Peripécias expansivas que se mostram inquietas querendo alterar a face das visões e demarcações na arte de cultivar, ornamentar, lutar e saborear a vida.
Por não encarar o mundo a partir de relações lógicas e previsíveis, Dim sai revelando o que encontra pelo caminho, escutando madeiras que falam e, como um Gepeto temporão, fazendo variados e coloridos Pinóquios. Cada boneco, cada tela, cada escultura que ele produz é a narrativa de um cotidiano talhado, serrado, colado, pintado. Nesse universo de representações, ao mesmo tempo ingênuas e malazarteanas, a meninada toma banho de pétalas no jardim, sobe em coqueiro, saltita sobre muros e come caju no pé. E se tem chuva com sol, as raposas estão casando.
Com o seu jeito de ser, de agir e de fazer arte, Dim dá um não a muitas das razões instrumentais que nos cercam de obrigações inúteis. Cria como se quisesse dizer a si mesmo que existe e para sentir a realidade tangível. Tudo o que faz é luminoso. Sua obra é feita de exclamações. Assim, ele se encontra, se perde, se parte, se prende, se multiplica em telas, brinquedos e esculturas para ser a verdade da arte que lhe cabe fazer. Nesse ponto, Dim faz emergir em nós, que o admiramos, a essência da unidade e da pluralidade do que somos, quando descobrimos que muitas vezes estamos alinhados em modos de viver que não escolhemos. Assim, a arte do Dim nos devolve pedaços de nós mesmos em lembranças muitas vezes extraviadas pelo tempo e pela alegação da falta de tempo.
Um filme sobre o Dim é um filme sobre a engenhosidade humana. A inventividade é o sujeito desse filme e o Dim talvez seja a materialidade do seu alter ego, se é possível dizer assim. Uma sutileza moldada em imagens e enigmas transbordantes, que Nirton Venâncio certamente valorizará por ser um cineasta com pulsão literária. Quem conhece seus documentários, como “Um cotidiano perdido no tempo” e “O último dia de sol”, sabe que ele é capaz de mover a realidade mais dura, descrevendo-a com sensibilidade, intenção, ação e consciência poética.
Ao filmar a maneira como se realiza a produção do trabalho de artes plásticas do Dim, Nirton está realçando uma linguagem de representação plástica de grande originalidade, marcada pela ausência de comodismos diante das formas consagradas das manifestações artísticas. O produto desse documentário é o processo criativo, a aproximação com o brinquedo e com o brincar, a valorização da cultura do brinquedo artesanal e o modus faciendi de um artista que revelou sua habilidade para as artes brincando de fazer brinquedos. A estética do Dim trata da objetivação das figuras que o inquietam desde a infância. Contar esse processo é uma boa tarefa para o cinema. Um trabalho para Nirton Venâncio.