Um filme sobre a realização do si
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 15 de junho de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

FAC-SÍMILE

op_umfilmesobrearealizacaodosi

Poucas situações são tão embaraçosas para a condição humana quanto a confusão da consciência decorrente do desconhecimento dos códigos sociais em contextos de desigualdade e preconceito. O drama biográfico Chocolate, um dos bons filmes do Festival Varilux de Cinema Francês (2016), em cartaz até o próximo dia 22, em Fortaleza, trata notavelmente dessa questão.

A opção do diretor franco-marroquino Roschdy Zem de concentrar a trama no estado em que o protagonista sente que tem o talento, embora não saiba como deixar de pagar o preço do sucesso com a caricatura da submissão, torna a narrativa mais atraente. O que está em movimento na tela é o indivíduo, com tudo o que compõe a ambiguidade das suas desventuras.

Rafael Padilla (1868 – 1917), interpretado pelo excelente ator franco-mauritano-senegalês Omar Sy, nasceu escravo na Cuba das plantações de tabaco e cana-de-açúcar, sob domínio espanhol. Tem vagas lembranças da infância, de cenas como a de um grupo de comensais fazendo do seu pai um engraçado cachorrinho adestrado.

Certo dia, já adulto e sobrevivendo na França, foi identificado pelo dono de um pequeno circo como exótica atração de picadeiro. E passou a ser apresentado no papel de canibal africano ao lado de uma macaca até ser convidado pelo palhaço George Footit, na também incrível interpretação do ator franco-suíço James Thierrée, para trabalharem juntos.

Na dupla com Footit ganhou o pseudônimo de Chocolate, numa alusão à cor da sua pele. Para a palhaçaria naqueles tempos de virada do século XIX para o século XX, um negro sendo chutado por um branco era motivo suficiente para gargalhadas do público. Foi assim que eles iniciaram a trajetória da primeira dupla cômica circense.

Footit reproduzia o achincalhamento do amigo com a naturalidade da cultura dominante, mas o tratava com alteridade. Embora mais conhecedor dos códigos de negociação, ele fazia questão de que os dois fossem vistos como de mesmo valor artístico. O palhaço interpretado por Thierrée tem o semblante angustiado dos que se viram como podem.

Os dois fizeram tanto sucesso que foram contratados para atuar em uma grande companhia parisiense e viraram referência em todo o país. Mesmo assim, Chocolate sentia que poderia ir além do palhaço que apanha. Sem referências claras de quem era, nem de que lugar do mundo teria saído, vivia atordoado por não se sentir contido em si mesmo.

Chocolate era um apelido que não dizia respeito à sua essência e ele não sabia como romper com isso. O incômodo de somente ser percebido por sua condição de não-branco chegou a explodir de indignação quando ele viu um cartaz da dupla em que, diferentemente da imagem de Footit, seu rosto aparecia como uma aberração.

Ficou atônito quando visitou um zoológico humano de pessoas dos territórios ocupados pela França e se viu nelas. Esse tipo de choque fortaleceu sua vontade de interpretar Otelo, de Shakerpeare (1564 – 1616), um personagem mouro, portanto de pele escura, até então interpretado por atores brancos com o rosto pintado. Apesar do destacado trabalho, foi vaiado e chamado de impostor. Foi então que largou a celebridade infame do Chocolate e morreu na dignidade do anonimato como Rafael Padilla.