Um hierofante chamado Ciço
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 23 de dezembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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A reabilitação do padre Cícero (1844 – 1934), decidida por gesto lúcido e inteligente do papa Francisco, proclama o surgimento de uma nova situação da figura desse mito nordestino no baralho religioso, político e cultural brasileiro. A inusitada experiência pastoral e o estado mítico alcançado pela figura do arcano caririense ganham com esse fato uma perspectiva revigorante.

O fenômeno do Padim Ciço, em toda a sua complexidade na conexão entre as coisas terrenas e o mundo espiritual, ganha potência de significação na vida e na obra de alguém que conseguiu a um só tempo ser santificado e permanecer como uma pessoa comum, com tudo o que cada uma dessas condições representa. Essas duas dimensões convergem na imagem do guia orientador das massas ante os designíos divinos e a dura realidade objetiva.

Ter sido elevado à condição de santo popular não o eximiu de atos e pensamentos como indivíduo, o que de certo modo justifica tantas polêmicas em torno do seu nome. Cícero Romão é um hierofante do sertão, um líder supremo marginal, que trabalhou pela convergência de esforços entre diferentes. Pensou e agiu como um pontífice, no sentido daquele que oferece pontes para a ligação das pessoas.

O padre Cícero é uma personalidade única. Foi em torno e por conta de sua figura que a cultura brasileira, em sua vertente nordestina, ganhou grande parte de sua força de atração e de disseminação. O Cariri é o umbigo cultural do Ceará, o centro de superabundância da nossa realidade. No meu livro “Ciço na guerra dos rebeldes” (Cortez Editora) procuro transmitir em ficção histórica a enorme contribuição do padre Cícero à nossa cultura, nas suas dimensões sociais, políticas e econômicas.

Para os romeiros, para os brincantes, para os comerciantes e para todos os que de algum lugar do Nordeste passaram a se dirigir a Juazeiro do Padre Cícero por força da benção ao Padim Pade Ciço, a maneira de viver e de perceber o mundo elevou-se ao grau de manifestação das realidades sagradas. A imagem de demiurgo, do artífice dos motivos da alma, reforçou em seus adeptos e admiradores uma atração poderosa.

Cícero tornou-se uma espécie de ponto de orientação e foi com base nesse senso de referência fixa que ele fundou e impulsionou o desenvolvimento de Juazeiro, esse lugar cosmogônico construído com a matéria-prima da fé e da crença de que com altar e oficina, reza e trabalho, ricos e pobres poderiam encontrar caminhos de convivência, inclusive no plano consagrador das relações com a natureza.

O chamado do papa Francisco ao padre Cícero, para que volte aos quadros da Igreja, evoca uma figura santificada pelos fiéis, reveladora do sentido concreto de religiosidade e com aspectos de simplicidade bem próximos ao da atual reorientação vaticanense. Roma vem a Juazeiro fazer uma espécie de reintegração de posse do território ciceropolitano que deixara para trás.

A essa altura da história, uma eventual beatificação e canonização do Ciço pode ser vista como redutora da grandeza do mito, já que ele formalmente se limitaria a ser um santo católico, quando normalmente usufrui de veneração ecumênica. As cartas estão na mesa e, ao que parece, a reaproximação faz sentido, considerando que o diálogo entre religiões tem sido um mantra do papa Francisco.