Um novo país começa com 2007
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 28 de Dezembro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Perdoem-me os pessimistas e os que não acreditam na evolução do processo democrático brasileiro, mas olho para o ano que chega como um momento de grandes possibilidades afirmativas da nossa vida social e política. Tenho a agradável sensação de que alcançamos o estado ideal para iniciarmos uma experiência democrática modelada por todos os privilégios e peculiaridades que tem uma sociedade miscigenada de um país abundante e continental.

O vigor das gentes brasileiras, manifestado na nossa enorme capacidade de produção de símbolos, o funcionamento regular das instituições e o crescente aumento da consciência de que temos o desafiante papel de atuarmos como liga geopolítica, tanto entre os hemisférios norte e sul, como na articulação comercial e cultural entre o leste e o oeste do planeta, são alguns pontos encorajadores da razão de ser do País.

A grandeza dessa missão mundial repercute evidentemente no plano das desigualdades internas. Sentimos que precisamos dar certo. Entretanto, esse sentimento enfrenta um fenômeno provocado pelo choque entre essa vontade de acertar e as resistências oligárquicas, que insistem na preservação da concentração da renda, da riqueza, das forças políticas, do poder cultural e na manutenção de um sistema no qual uma minoria decidia o que era ou não democrático e a ampla maioria se enquadrava.

Os operadores teóricos classificaram a sociedade em classes com base na condição econômica e não na pujança cultural. Assim, quem era de posses inferiores deveria ter como objetivo subir de posição para a camada média e daí por diante. A chamada classe média chegou, por sua vez, a assumir a responsabilidade social de formar opinião, de controlar e regular comportamentos. Mas, seduzida pela ganância e pelo individualismo, não se sustentou. Não cuidou da própria essência cultural para se garantir.

O avanço democrático brasileiro desorganizou as referências calcadas na economia e criou novos códigos sociais. O País experimenta uma configuração humana que pode ser descrita como grupos que vivem suportados por algumas diretrizes de condução social, sem depender de enquadramentos de classe. A homogeneização do gosto e do acesso ao supérfluo diluiu o sentido de classe social. A dondoca da antiga classe “A” tem hoje a mesma ambição de possuir um novo modelo de celular que move os interesses da pobretona da antiga classe “D”. Ambas sofrem do nivelamento coletivo de supostos direitos iguais, produzidos pela doutrina do consumismo, essa espécie de comunismo do capitalismo.

A estratificação econômica perdeu sentido também quando a ausência de valorização da honestidade, da seriedade e dos propósitos comuns tornou horizontal a noção de marginalidade. Se a verdade é uma questão de interpretação, pode-se dizer que, independente de classe, se vive atualmente em assemelhados estilos de vida marginal. A diferença é que, de um lado, temos uma falsa elite golpista que insiste violentamente em fazer do espaço público a arena de seus interesses privados, e, de outro, uma população que procura democraticamente se reinventar em uma situação de descoberta de novas lideranças confiáveis.

Nesse embate de desejos contrários a sociedade brasileira se desenquadrou. Está mais próxima de si mesma em sua pluralidade com diversidade, embora correndo o risco da falta de parâmetros sociais centrados na sua grandeza cultural. Políticos e especialistas têm procurado reenquadrá-la, oferecendo sistemas de cotas étnicas e compensações que a mantenha aspirando seguir os caminhos tradicionais de escala econômica, social e intelectual. Não dá mais. A agenda política brasileira precisa dialogar com a expectativa de uma gente vocacionada para uma certa felicidade informal. Promessas de emprego e de sonho da casa própria já não são mais suficientes para subordinar a população à divisão econômica por classes.

As pessoas sentem-se amplas como a caatinga em processo de desertificação, amplas como a floresta amazônica em acelerado desmatamento e amplas como a favelização das metrópoles. Descobriram que desse jeito todos estamos com os dias contados, exceto alguns pequenos grupos que estão preparados para deixar o País quando a situação ficar insuportável. A permanência da falsa elite, ainda orientada pelo modelo mental de que está no Brasil para explorá-lo e não para contribuir com o seu desenvolvimento, vem empurrando para o abandono a realidade brasileira e sua exuberante mescla cultural. Largadas à própria sorte, as pessoas saíram pedindo socorro à memória do cangaço, do curupira, boitatá, saci-pererê, aos banqueiros de religião e aos entes urbanos que embalam a periferia de hip-hop, desmontando o significado de escala social, como recurso de sobrevivência.

Passou-se a confundir com arte, todo espetáculo de entretenimento. Esse embaraço cultural abalou o nosso juízo crítico ao confundir valor artístico com valor de mercado. Com isso, especialmente a ex-classe média sofreu um agressivo desenraizamento psíquico, tornando-a incapaz de continuar simbolizando conquistas aos menos favorecidos. Enquanto isso, as ex-classes pobres, mesmo atingidas pelo dogma do consumismo, seguiram necessitando das suas raízes culturais.

Os economistas apregoam que a ex-classe média se recuperará caso o Brasil passe a ter tais e tais taxas de crescimento econômico. Esse pode até ser um fator considerável, mas o determinante é a existência de orgulho de pertencimento. No mundo do consumismo o gosto é resultado da indução por escolhas entre marcas, enquanto na realidade comunitária, os valores culturais resultam de longos processos de vivência, convivência, formação, educação e troca de conteúdos que possam se estender do local ao internacional.

O Brasil de 2007 inaugura uma inédita experiência democrática sem estratos sociais convencionais. Para completar a novidade, o conceito de esquerda, que foi desgastado por alguns oportunistas que chegaram ao poder, não servirá mais de máscara para encobrir aproveitadores da credulidade coletiva. Ao ser diplomado, para o segundo mandato, o presidente Lula explicitou para a nação que o Brasil tem um governo de coalizão. Parcela da direita está nessa confluência partidária que governa o País, ao passo que outra fração da mesma direita se reorganiza para desestabilizar o governo e os movimentos sociais apresentam uma plataforma de exigências para um projeto popular.

É assim que começa o jogo do ano que vem. O que muitos vêem como degradação da vida social pode ser na verdade o início de formação da nossa ordem democrática. Precisamos nos acostumar com a presença dos diversos setores sociais na vida política do País. Novas elites culturais, intelectuais, sociais, políticas e empresariais deverão se pronunciar para ir ao encontro dos anseios da inteligência intuitiva da coletividade mestiça brasileira. Estão, portanto, criadas as condições necessárias ao exercício democrático pleno. A conjuntura sinaliza para a oportunidade de ação das nossas elites legítimas, aquelas que, ao serem tentadas pelos encantos da usura e do poder, terão a honra de ficar ao lado do desenvolvimento com eqüidade social.