Uma classe em travessia
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 11 de Agosto de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Em que pese o fato de não ter uma clara distinção de ordem sociocultural, o contingente de 30 milhões de brasileiros que ascendeu nos últimos nove anos à categoria de consumidores no Brasil constitui, do ponto de vista de rendimentos, uma classe em travessia. Essas pessoas, que passaram a ter renda entre R$ 250,00 e R$ 1.000,00 por mês (considerando um ganho familiar de R$ 1.000,00 a R$ 4.000,00 para quatro pessoas), têm sido classificadas pelo governo como integrantes de uma Nova Classe Média.
O rápido declínio da pobreza e a lenta elevação da distribuição no âmbito da classe média produziram um crescimento desbalanceado da renda no Pais, resultando na expansão de uma massa heterogênea de brasileiras e de brasileiros com níveis comparáveis de condições financeiras. As contradições constitutivas desse quadro requerem atenção para dois movimentos, um no campo econômico e outro no campo cultural.
O movimento no campo econômico ganhou na segunda-feira passada, dia 8, um seminário orientador de diretrizes para políticas públicas que possam ampliar as oportunidades dessa classe média emersa das ondas da pobreza, com maior segurança social. Realizado em Brasília, pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e pelo Ministério da Fazenda, o evento foi pautado também pela urgente necessidade de medidas anticíclicas de fortalecimento do mercado interno diante da recessão mundial.
Comentarei um pouco mais à frente alguns pontos que, ao participar desse seminário, intitulado “A média faz a diferença”, entendi como de fundamental importância para a potencialização desse fenômeno de mobilidade social por impulso econômico e sua repercussão em arranjos étnicos, religiosos, familiares, educacionais e de gênero. Antes, porém, revelarei as anotações que, enquanto ouvia os palestrantes, fiz pensando no que poderia ser um movimento no campo da cultura, que pudesse facilitar que esse grupo social realmente se tornasse parte integrante da classe média.
E quando falo em classe média, refiro-me ao conjunto de cidadãs e cidadãos dotados de repertório cultural e técnico, com relativo padrão de consumo e valores capazes de assegurar a coesão social e de ter pensamentos prospectivos, indispensáveis à sustentabilidade. Neste aspecto, o Brasil está carente em todas as classes. Imagino que caberia ao Ministério da Cultura (MinC), em articulação com o Ministério da Educação (MEC), a montagem de um amplo programa de políticas de cultura para um País desejado, com foco especial na Nova Classe Média.
É temerário seguir com a turbinagem da melhoria de renda e da proteção social, se tivermos o cuidado de olhar apenas para a nossa defesa territorial, com base na competitividade do mercado de bens e de serviços financeiros, sem uma relação mais constante e consistente com o mundo da cultura. O equilíbrio do sistema econômico-social passa pela oportunidade de refletirmos sobre os fundamentos da vida em comum, pelo fortalecimento das instituições e por uma sociedade civil forte, coisas que só podem ser conquistadas plenamente pelas essencialidades culturais.
Os sistemas nacionais de cultura e de educação precisam estar fortemente integrados e comprometidos com o lema de que “Um país rico é um país sem pobreza”, adotado pelo governo da presidenta Dilma Rousseff. E o fator determinante para essa construção política e social é uma educação alicerçada na cultura. Ao investir na fase de estabilização da Nova Classe Média, dando o suporte indispensável para que esse grupo social permaneça no leito da economia, evitando qualquer regresso às margens dos indicadores de pobreza, as políticas públicas brasileiras não devem ser traídas pelo mesmo senso de imediatismo que caracteriza a compulsão de quem tem a primeira experiência de crédito.
A minha expectativa com relação a uma ação integrada do MinC e do MEC, em favor de facilitar que a sociedade brasileira pense a vida a longo prazo, está em linha com o pensamento do economista Eduardo Giannetti, quando ele diz que é papel do poder público é trabalhar para reduzir o fosso entre o valor representado e a prática de vida das pessoas. Essa separação entre o que é motivacional do que é valorativo está diretamente ligada à complacência com que confundimos as circunstâncias com a permanência.
Giannetti destaca outro exemplo de dissonância no ambiente econômico em que floresceu a Nova Classe Média, ao comentar que os emersos da pobreza querem educação, mas basicamente só têm recebido venda de credencial, sem contrapartida de conhecimento. Esse pragmatismo do mercado e de muitas das pessoas em ascensão gera uma cumplicidade difícil de ser superada, sem o exercício do refinamento dos quereres, que só a cultura possibilita.
O estudo apresentado por ocasião do seminário “A média faz a diferença” mostra a migração da participação das pessoas em entidades tradicionais, como partidos e sindicatos, e um maior engajamento, sobretudo dos jovens, em coletivos culturais e redes sociais. Revela que os que têm acesso a computadores se sentem mais criativos, mais empreendedores e superiores aos demais. Uma parte significativa do debate teve suas lentes voltadas para a questão da identidade e dos valores da Nova Classe Média.
O entendimento dos comportamentos e das atitudes que se assemelham e que diferem do jeito de ser e de agir desse grupo social, antes da mudança de patamar aquisitivo e com relação às classes privilegiadas e às que continuam abaixo da linha da pobreza, é tarefa para ação cultural e educativa. O sociólogo Roberto Dutra apresenta uma chave para essa questão ao afirmar que o que separa as classes atualmente é mais a capacidade de descortinar chances e de ter esperança do que necessariamente a renda. Para isso, põe em debate a necessidade de superação da dicotomia existente entre solidariedade e individualismo, valores e pragmatismo, tão presentes no perfil de uma classe modelada pelo poder de compra.
Na opinião do economista Márcio Pochmann esse nexo de classe compradora não se manterá por muito tempo. Para ele, mesmo que os novos segmentos não sejam individualistas por princípio, a tendência de estagnação na ampliação de postos de trabalho forçará uma corrida para a polarização social. A saída para isso, segundo Mário Pezzini, especialista italiano em política de clusters, está na transformação do sistema produtivo. O País precisa pensar urgentemente em um novo modelo de crescimento. Também acho, mas isso só poderá ser feito para valer com uma imersão cultural que compatibilize os sonhos e a capacidade de empreender da brasilidade.
Aliás, brasilidade é um ponto de destaque do estudo discutido no seminário. As pessoas que integram a Nova Classe Média Brasileira têm preferência e valorizam os produtos nacionais, contudo, não têm a menor noção da necessidade de capitalizar o País, a fim de individual e coletivamente termos mais segurança econômica. Eduardo Giannetti chama de miopia temporal essa limitação imposta pela excitação imediatista que leva o trabalhador a gastar tudo o que ganha.
Não há dúvida da importância do enfrentamento dos desafios voltados para poupança, demanda por crédito, situação da mão de obra, consumismo e novas habilidades para manter a mobilidade dos últimos anos, ou pelo menos para colocar uma quilha que evite o naufragar dessa classe em travessia. Mas para o Brasil se afirmar como pais de respeitada importância no cenário da multipolaridade mundial, faz-se necessário pensar em qualidade de vida e isso passa por cultura e educação.