Uma democracia e três destinos
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 27 de junho de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Procurei ver uma boa quantidade de vídeos postados na internet com argumentos dos participantes das manifestações que há mais de duas semanas vêm sacodindo o Brasil. Acompanhando o meu filho, de 14 anos, que queria ver de perto o que estava acontecendo, estive presente em dois dos protestos ocorridos em Fortaleza: o que culminou no Palácio da Abolição, sede do Governo do Ceará, e o que teve concentração no Centro Dragão do Mar, com passeata até a Praia de Iracema, finalizando no Palácio do Bispo, sede da Prefeitura de Fortaleza.
Além disso, li com atenção uma série de mensagens sobre o assunto, umas enviadas à minha caixa postal eletrônica e outras publicadas no espaço virtual da empresa Facebook. Somando ainda as informações que observei em televisão e jornal, a conversa com amigos e a cobrança de leitores para que eu me pronunciasse sobre a questão, resolvi expor como estou percebendo esse fenômeno de expressão do nosso tônus democrático.
Embora diversos assuntos tenham sido ventilados, tais como os excessos de gastos públicos com a Copa, a carestia, o mal estar de segurança e as manobras de políticos para reduzir o poder de investigação do Ministério Público, a bandeira comum dos grupos mobilizados é a falência da representação dos partidos políticos, pelo viés da corrupção, do cinismo, da impunidade e da indiferença.
Quando criticam os manifestantes, por gritarem que “o povo unido não precisa de partido” ou por rejeitarem a infiltração de representantes partidários nas passeatas, alguns intérpretes dos acontecimentos não atentam para a metonímia existente nessas palavras de ordem e nessa atitude de rejeição, reduzindo-as a descarte da política e a intolerância ao direito de expressão dos que atuam em organizações e aparelhos partidários.
Ora, ora, se a motivação principal dos protestos é a negação a um modelo político-partidário dominado pela apropriação indevida do mandato pelo eleito, como se este fosse uma propriedade sua e não do eleitor, é natural que a presença de bandeiras de partidos seja considerada intrusa. É como se o deputado Feliciano penetrasse com um cartaz da “cura gay” em uma passeata por direitos homoafetivos. Em que pese o fato de que na roleta desses protestos há interesses que vão de avestruz a vaca e que o perfil dos participantes é visivelmente heterogêneo, há de se convir que o ponto de união dos insatisfeitos é, repito, uma explicitação da falência da representação cleptocrática em que se tornaram os partidos políticos no Brasil.
Houve tentativas de influenciar o curso e o discurso das manifestações, com alegações de que a verdadeira luta é a luta de classes e que é preciso deixar clara a definição de direita e esquerda, ao mesmo tempo em que foram esboçados ensaios de desqualificação da juventude em movimento, apontada por alguns como despolitizada e, portanto, incapaz de promover um protesto de tal porte. Esse tipo de posicionamento reacionário é mais uma prova do anacronismo de alguns líderes políticos que, por se considerarem donos de algumas verdades e por medo de perda de espaço, têm dificuldade de ver nesse fenômeno, que chamo de “cidadania orgânica”, a espetacular reapropriação das ruas, depois de anos de reclusão no mundo digital.
É certo que boa parte da galera que coloca em cartazes que “Isso não é uma revolta, é uma revolução” está deslumbrada com a experiência de andar pelas ruas, de sentir e de descobrir a cidade onde mora, mas com a qual não estabelece relações de proximidade. Muitos vão para as ruas como pássaros que deixam a gaiola, sem saber voar direito. Mesmo assim, esses jovens percebem que o incômodo da vida urbana, gerado pelo confinamento a lugares ditos seguros, pela frustração do consumismo como ideia de felicidade, pelo descaso com a dimensão cultural do ser e do viver e pela sensação de inutilidade ante o pragmatismo competitivo do marketing educacional, decorre da falta de políticas públicas, que não serão efetivas enquanto imperar o desdém e a roubalheira no âmbito da política.
Não é fácil para um adolescente suportar o paradoxo de ser, ao mesmo tempo, alvo da redução da maioridade penal e apontado como alguém desprovido de criticidade. Mas essa idiossincrasia não é de hoje. Quando, há 25 anos, ainda sem internet, adolescentes foram às ruas de várias cidades brasileiras reclamar massivamente dos abusos das mensalidades escolares, não faltou quem os acusassem de não saber o que faziam. Naquela época, coloquei-me contra – como contra me coloco agora – esse pensamento discriminador de jovens que se mostram dispostos a abominar publicamente o que os incomoda, exatamente por serem pessoas não viciadas nos cacoetes da politicagem e por tenderem a acreditar na possibilidade de transformar o mundo.
Em artigo que publiquei no jornal do Movimento Pró-Mudanças (“A juventude da transição”, 03/05/1988), defendi que “em uma sociedade de partidos capengas e de muitos militantes viciados em chavões ultrapassados por si mesmos, a briga dos estudantes nas ruas (…) não deixa de ser uma circunstância adequada ao seu crescimento cidadão”. Mesmo considerando aqueles que só querem é “botar o bloco na rua”, como diz o refrão de uma notável música de Sérgio Sampaio (1947 – 1994). Na letra de “Eu quero é botar meu bloco na rua”, o compositor capixaba, um dos malditos da MPB, substancia bem a audácia da juventude diante do que não é permitido ousar: “Há quem diga que eu não sei de nada / Que eu não sou de nada e não peço desculpas”.
Com um pé na rede virtual e outro na teia de asfalto, os manifestantes reprocessam estímulos de toda sorte e ordem. É o caso do jingle-canção “Vem pra rua”, de uma montadora de automóveis, cuja intenção original era incentivar as pessoas a irem às ruas torcer na Copa das Confederações, mas o apelo “Sai de casa / vem pra rua / Pra maior arquibancada do Brasil” acabou servindo para animar protestos contra a própria Copa, no que ela significa de chance de desvios vultosos de recursos e de imposições da Fifa às práticas desportivas brasileiras. É contraditório, no entanto, que muitos participantes, após protestarem, saem para consumir produtos dos que patrocinam o evento que acabaram de criticar.
A perplexidade causada por uma expressão de cidadania tão peculiar não tem um racional acessível pelos caminhos dos conceitos preestabelecidos. Pensando sobre isso, tempos atrás, escrevi: Os quereres lógicos e psicológicos da cultura brasileira acabaram criando reagentes sociais e políticos que conseguiram acumular por ressumação uma sensibilidade democrática pela periferia da consciência (“A democracia empírica”, OP, 30/09/2003). É o que vejo nessa vibrante pulsação democrática que, embora misture inconformados, oportunistas partidários e vândalos, revitaliza a alma das ruas.
Vivemos, portanto, mais uma fase da nossa democracia experiencial, com três alternativas de destinos neste momento: 1) a rota da pressão dos defensores da democratização da democracia, que pode influenciar ajustes no exercício de tirar a exclusividade dos políticos para fazer uma reforma política decente e de transformar a corrupção em crime hediondo; 2) a trilha de infiltração partidária, que pode pulverizar a agenda e enfraquecer a essência dos protestos; e 3) a encruzilhada da violência, que em qualquer direção pode até servir aos interessados em produzir sensação de desgoverno no País, mas que, prevalecendo, será um lamentável desastre nacional. Pelo visto, temos muito o que pensar sobre isso, e mais ainda o que fazer.