Uma didática ao anticonsumismo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 28 de Abril de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A educação para o consumo passa obviamente pelo uso racional do dinheiro, pela priorização do que é mesmo necessário e pelo aprendizado em favor de escolhas responsáveis na hora da compra de bens e serviços. Passa também pelas leis de proteção e de defesa do consumidor e pela própria consciência que cada pessoa ou grupo de pessoas tem da sua força de pressão sobre o mercado. Mas passa, antes de tudo, pelo modo como inspiramos uns aos outros em simples e caseiros comentários cotidianos.
Uma das formas desse educar, que mais me parecem tranquilas e de grande eficiência, está nas observações despretensiosas que normalmente fazemos diante dos acontecimentos. Tudo o que testemunhamos no próprio lugar ou o que sabemos pelo noticiário e por meio de redes de relacionamento dá margem a comentários educativos. A riqueza das contradições constitui uma inesgotável fonte de formação, o que faz da apreciação espontânea uma prática educacional desenvolvida em uma série de circunstâncias.
Os exemplos que facilitam o compartilhamento da nossa maneira de ver a questão do consumo que não mede consequências surgem a todo momento e nos mais variados domínios e situações. Tomando como referência o caso do recolhimento, na semana passada, das peças da coleção “Pelemania”, das lojas Arezzo em todo o Brasil, é possível despertar um sem-número de conversas e atitudes. Afinal, a empresa respeitou o posicionamento dos consumidores, após intensos protestos nas mídias de relacionamento contra a venda de produtos confeccionados com peles de animais.
O interessante é que essas manifestações traduziram uma rejeição ao uso de peles verdadeiras, a despeito de certificados de origem, o que demonstra o crescimento da intolerância da sociedade diante de certas práticas contra a natureza. Rejeição essa que alcançou as modelos que levaram para as passarelas e comerciais as bolsas, bijuterias e estolas da grife, feitas de peles de coelhos e raposas. Uma delas, Emily Germano, respondeu às acusações na própria internet: “Gente sou apenas uma modelo, não uso e nem compro pele de animais, parem de me chingar!!!” (sic).
Independente de ela ter escrito xingar com “ch” – o que infelizmente acabou desviando a atenção de muita gente do foco do problema – dentro da resposta da modelo revela-se uma grave sutileza, normalmente identificada no posicionamento de muitos profissionais que servem à promoção do consumo, embora não comprem nem usem os produtos a que atribuem valor e dão visibilidade. Levantar dúvidas sobre essas posturas e comentá-las com os filhos é fundamental na paciente e complexa missão de desconstrução do consumismo.
A mesma reação alienada e alienante de Emily foi demonstrada pela cantora Sandy no mês passado, quando questionada pela colunista Mônica Bergamo (FSP, 08/03) sobre a associação da sua imagem de boa moça à cerveja Devassa: “Essa é uma discussão que não cabe a nós, artistas. Somos contratados para fazer propaganda. Se é bom para nós, a gente vai lá e faz. Todos são autorizados a beber. Essa responsabilidade não cabe aos artistas. Essa discussão é para psicólogos, deputados, especialistas. Não quero me meter”.
Ao afirmar que não quer se meter nessa questão – mesmo metida até o último cheque do seu contrato – Sandy se coloca como se não tivesse nada a ver com o crescimento do consumo desordenado de álcool por adolescentes, embora seja uma cantora identificada com esse público. Sua desculpa é semelhante a da modelo da Arezzo. Uma pede para não ser alvo de xingamentos, por não usar nem comprar pele de animais, e a outra, se esquiva das críticas sob o argumento de que “a gente não precisa gostar exatamente do produto para fazer a propaganda”. E, talvez para não desagradar o patrocinador, jura “por Deus” que experimentou e gostou da cerveja.
Na didática da conversa solta não é necessário fazer qualquer atalho para dizer quem tem ou não razão. Basta deixar o assunto circular. Se tiver como alimentar o tema com contrapontos, então, a possibilidade de êxito aumenta. Na mesma coluna (20/02) uma entrevista com o Rivaldo, ex-jogador da Seleção Brasileira de Futebol, chamou a minha atenção. Ele sustenta que não há fortuna no mundo que o leve a fazer propaganda de bebida alcoólica. “Sou um atleta e quero ser um exemplo, principalmente para as crianças que gostam de esporte”. Depois de uma declaração dessas, a percepção de que lucrar com a imagem tem vínculo direto com o respeito a quem precisa dela para se espelhar fica naturalmente disponível para ao discernimento de cada um.
E quando esse tipo de recurso não faz parte das práticas familiares e escolares? Ora, as crianças ficam sem a oportunidade de referências comparativas e quase sempre embarcam no cruzeiro do consumismo. Achei muito sintomáticas as respostas de umas mães que foram entrevistadas pelo repórter Paulo Sampaio (Fashion Kids reúne ‘socialitezinhas’, OESP, 03/04), tendo como recorte a participação das filhas em um desfile de moda infantil, que acontece no shopping Iguatemi de São Paulo: “A minha filha quer óculos Chanel, Prada. A gente gosta de coisa boa, elas aprendem”, anuncia o alheamento de uma; “Eu não imagino minha filha colocando uma roupa da Renner nem para dormir”, complementa o preconceito da outra.
Estou escrevendo esse texto em São Paulo e aqui é bem nítida a condição da infância amuralhada, embora essa seja uma sina comum das meninas e dos meninos dos grandes centros urbanos. Não sei não, mas dá uma tristeza saber dessas crianças sempre confinadas em lugares fechados, tendo como horizonte apenas os contornos das janelas dos carros e as telas dos celulares, computadores, cinemas de shopping e televisões, por meio das quais buscam enxergar referências condicionadas aos objetos do consumismo e ao vazio de experiências reais das celebridades. Tanto que passear de limusine tem sido o presente de aniversário escolhido por muitas crianças paulistanas.
Por mais deploráveis que possam ser tais situações faz bem comentá-las abertamente em casa. Pode ocorrer dos nossos filhos acharem fantástico algo que não aprovamos, como pode acontecer de eles se colocarem em posição extrema apenas para testar as nossas convicções. Sejam quais forem as posições por eles tomadas, trata-se de uma vivência preciosa no processo de redução das indeterminações que fomentam os conflitos próprios das tentativas de ser alguém em um mundo onde os sinais de adequação das utopias parecem perto demais da sobrevida do lúmpen.
A apreciação desprendida de juízo imediato cria ambiente para o conforto das considerações e facilita o exercício educacional, sedimentado pelas interrogações que cada fato aporta ao instante. E temos que começar esse exercício o mais cedo possível. As corporações de produtos infantis, que vinham atraindo a meninada com games, filmes e best-sellers de possessões, demônios incontroláveis e situações apocalípticas, começam a atacar com marketing neonatal, iniciando o assédio à infância com brindes de produtos a recém-nascidos ainda na maternidade.
Um bom comentário a ser ventilado nas ocasiões propícias é o que põe na conversa a atenção com que a lei observa a criança mesmo em letras voltadas para adultos. É o caso da nova legislação antifumo da Espanha que proíbe as pessoas de fumarem em parques infantis, e da lei estadunidense que não permite a ninguém fumar em carro com crianças. Esses casos servem para os nossos filhos saberem que nem tudo está perdido.