Uma família multicultural
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 17 de junho de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O casal francês Claude e Marie Verneuil, religioso e tradicional, não ficou lá muito contente com o casamento de três de suas quatro filhas com pessoas de etnias fora dos padrões culturais europeus. Isabelle casou-se com o advogado argelino Rachid, Odile com o empresário judeu David, e Ségolène com o executivo chinês Chao.

Restava a caçula Laure e, nela, o casal depositava suas esperanças. Acontece que a danada se apaixonou por Charles, um ator costa-marfinense. No momento em que a ilusão de um pretenso bom casamento da filha mais nova entra em colapso, nasce a comédia Que Mal Eu Fiz a Deus, do diretor Philippe de Chauveron.

O filme, integrante do Festival Varilux do Cinema Francês, em cartaz nos cinemas do Dragão do Mar / Fundação Joaquim Nabuco, é mais do que uma catarse bem-humorada do sentimento de culpa dos pais que, diante de tal situação, perguntam-se onde foi que erraram na educação das filhas. Como se vê, trata-se de um drama satírico sobre preconceitos, expectativas e projeções.

Revestida da grande atualidade dos conflitos vividos pelos países europeus com relação aos imigrantes e descendentes de imigrantes, a obra retrata de forma divertida a imagem que temos e fazemos uns da cultura dos outros. A plateia ri alto da dificuldade de diálogo entre os genros de etnias diferentes e, principalmente, do orgulho ferido da irascibilidade francesa.

Sim, aqui também estou eu com o meu estereótipo dos franceses, rindo e refletindo sobre essas circunstâncias doces e amargas tão bem compartilhadas pelos personagens. Cheguei a imaginar que o diretor francês estivesse zombando de sua própria cultura, mas, depois, fiquei achando que o filme é uma maneira espirituosa de dizer que não somente eles têm rejeição a outros povos.

Revisionismos à parte, essa excelente comédia abre ainda janelas para quem quiser ver que nada é impossível de ser superado e que, em termos de multiculturalismo, apesar da barra pesada dos tempos atuais, tudo pode terminar em uma grande festa das culturas.

No meio do tenso fenômeno social, político e econômico que envolve a relação dos europeus com estrangeiros, Claude e Marie procuram não demonstrar o incômodo para não atrapalhar a felicidade das filhas. A mãe entra em depressão e o pai junta-se a André, o pai de Charles, para sabotar o casamento.

Em cenas hilárias, o filme aproxima-se da plateia por uma fala interior comum, a de que somos como somos vistos. Nesse jogo sobre as verdades das nossas mentiras civilizatórias, a maneira como um vê o outro em suas impressões e falsas impressões é o ponto central da graça e da desgraça.

À mesa com seus preconceitos, os personagens, movidos por seus antecedentes histórico-culturais fazem afirmações agressivas e tiram conclusões cheias de generalizações, em um festival de hábitos mentais desconcertantes, mal interpretados e revidados à base de preconceitos contrapostos.

Na condição de comédia da condição humana, Que Mal Eu Fiz a Deus consegue com leveza e bom humor nos tocar divinamente sobre a necessidade de integração entre as culturas do mundo, como uma realidade que não dá para ignorar.