Sim, algumas histórias são delirantes, não reconhecem a passagem do tempo, tumultuam a ordem da indústria de conteúdos culturais, não dizem ao certo onde querem chegar, têm humor afiado e afinado, e, para completar, são acusadas de estar cheias de gente incapaz de compreender que isso não tem futuro. Nessa confusão mental, ética, estética e artística, ainda reverbera a perturbadora máxima de Itamar Assumpção (1949 – 2003) de que “Porcaria na cultura tanto bate até que fura”!!!
A comemoração dos 40 anos do teatro Lira Paulistana foi feita no Itaú Cultural, na Avenida Paulista, de 22 a 25 passados. Foram quatro shows, com projeções de vídeos e entrevistas com artistas e produtores que fizeram a Vanguarda Paulistana e outros que beberam nessa fonte: Ná Ozzetti, Passoca, Clemente, Zeca Baleiro, Jica, Turcão, Taciana Barros, Paulo Barnabé, Tetê Espíndola, Vânia Bastos e Arrigo Barnabé, acompanhados por uma banda formada por Paulo Lepetit (baixo), Mário Manga (guitarra e cello), Marquinhos (bateria), Andreia Dias (voz) e apresentação do linguadetrapeano Laert Sarrumor.
O Lira Paulistana foi mais do que um lugar inspirador por onde passaram deixando rastro ou que, depois, imprimiram novas pegadas à Vanguarda Paulista, figuras como Itamar, Tom Zé, Tiago Araripe, Cida Moreira, Eliete Negreiros, Luhli e Lucina, os irmãos Tati, Suzana Salles, Vange Milliet, Bocato, Laura Finocchiaro, Luiz Waack, Jorge Mautner, Gereba e Capenga, Almir Sater, Nelson Ayres, Kid Vinil, Premê, Ultraje a Rigor e Titãs, entre outros. Esse teatro-porão foi um acontecimento no sentido žižekeano de fenômeno social e cultural.
Tudo a partir de um ponto de encontro aberto às artes, à literatura, à poesia e ao jornalismo cultural, que foi capaz de criar práxis de possibilidades, por sua grande variedade de características. Lugar de experimentações, de inventividade, de produção e de consumo de belezas e estranhezas. Lira em conceituação polissêmica que abraça lirismo e liberdade. Não conheci o teatro, mas curti muito do que dali emanava. Aquelas experimentações e novas concepções me atraiam; eram oxigênio sonoro para os ouvidos desorientados de alguém que tem “defeito de fabricação”, como diz Tom Zé. Na abertura da série A História D’Lira, senti que eu precisava mesmo estar ali testemunhando algo que nunca se esgota.
Quando Ná Ozzetti cantou Ah! (Luiz Tatit) fiquei pensando na força de interioridade daqueles sons, das palavras, dos gestos e das atitudes: “ Ah! Não pode usar qualquer palavra / Então é por isso que não dava / Eu tentava, repetia, achava lindo e colocava / Se não cabe, se não pode / Tem que trocar de palavra // Ah! Mas é tão boa essa palavra / Carregada de sentido / E com um som tão delicado / Agora eu vou ter que trocar? // Ah! Vá se danar (…) Nossa! É isso?!”. Sim, é isso, é a revelação do inesperado reafirmando que fazer sentido pode não fazer tanto sentido assim.
O acontecimento Lira Paulistana é um desobstruidor de fluxos de conceituações, de regras, formas e impressões. Mesmo tendo durado apenas meia dúzia de anos, segue fazendo convergir elementos de tantas e diversas manifestações, como uma espécie de triunfo das imperfeições bem definidas, vitais, substanciais e movidas por uma organicidade de pulsões imaginárias, sensoriais, sólidas, gasosas e espiraladas.