Uma modesta proposta ao PL da Infância
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 11 de dezembro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Fiquei com sensação de náusea quando me dei conta de que amanhã, 12/12/2013, o Projeto de Lei n. 5.921/2001, que trata da regulação e restrição da publicidade dirigida à criança, completará 12 anos de tramitação na Câmara dos Deputados. Doze anos equivale ao período de experiência da infância. Quanto descaso, quanta omissão! A sensação de enjoo torna-se ainda mais desagradável porque mais um ano está terminando e o PL da Infância está desde o dia 19 de setembro empancado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) sem pelo menos um relator designado.

Diante de tão repugnante situação, pensei se não seria o caso de propor alguma coisa para facilitar o trabalho dos senhores parlamentares e resolver de vez essa incômoda questão de abuso do mercado com relação às crianças. Encontrei nos escritos do satirista irlandês Jonathan Swift (1667 – 1745), célebre autor do clássico “As Viagens de Gulliver”, uma propositura dirigida às pessoas de bem do seu país, que suponho adequada às buscas vantajosas que parecem mover os nossos deputados federais.

Desgostoso com a insensibilidade das autoridades para com a situação da infância no Reino da Irlanda, Swift escreveu com rasgada ironia uma “Modesta Proposta” com o intuito de evitar que as crianças deixassem de ser um fardo para seus pais e para o seu país e passassem a ser benéficas ao público. O texto publicado em 1729 (editado no Brasil pela Unesp, 2002) me soa bem conveniente à atual conjuntura. Por isso, assim como Jonathan Swift, não espero a menor objeção por parte de suas excelências a alguns subsídios retirados da proposta do escritor irlandês, que podem “enriquecer” o PL da Infância:

1) “Um americano muito entendido (…) assegurou-me que uma criancinha saudável e bem tratada é, com um ano, um alimento realmente delicioso, nutritivo e completo, seja cozida, grelhada, assada ou fervida; e não tenho dúvidas de que possa servir igualmente para um guisado ou um ensopado” (p.23).

2) Uma parte das crianças deveria ser “reservada para reprodutoras” e as demais, “com a idade de um ano, colocadas à venda para pessoas de bem e fortuna, para serem engordadas e preparadas para uma boa mesa. Uma criança daria dois pratos numa recepção para amigos” (p. 24).

3) “Admito que essa comida seria um tanto cara, portanto muito apropriada para os senhores de terra que, tendo já devorado a maioria dos pais, parecem ter maiores direitos sobre os filhos” (p.25).

4) “A carne de bebê seria de estação durante o ano inteiro” (p.25).

5) “Já avaliei que o custo para sustentar um filho de mendigo deva girar em torno de dois xelins por ano (…) e acredito que nenhum cavalheiro negaria dez xelins pela carcaça de uma criança bem gordinha” (p.26).

6) “Esse alimento atrairia imensa clientela para as tabernas, cujos proprietários certamente seriam suficientemente sensatos para conseguir as melhores receitas” (p.31).

7) “Aqueles mais econômicos (…) poderiam esfolar a carcaça, cujo couro, artificialmente tratado, daria admiráveis luvas para senhoras e botas de verão para finos cavalheiros” (p.26).

8) “Matadouros poderiam ser designados para esse fim (…), e podemos estar certos de que não iriam faltar açougueiros, embora recomendo que as crianças deveriam ser compradas vivas e passadas pela faca pouco antes de serem preparadas” (p.26).

9) “Uma pessoa de muito valor, verdadeira amante de seu país (…) teve o prazer de oferecer um aprimoramento ao meu projeto (…) ele imaginava que a [escassez de] carne de caça poderia ser muito bem suprida pelos corpos de rapazes e moças, de não mais que 14 anos nem menos de 12 (…) Mas, com todo o respeito devido a tão (…) meritório patriota, não posso concordar (…), meu conhecido americano assegurou-me, baseado em vasta experiência, que sua carne era geralmente dura e magra” (p.27).

10) “Algumas pessoas de espírito desalentado estão bastante preocupadas com o grande número de idosos, doentes e mutilados (…) Mas essa questão não me preocupa nem um pouco, pois é sabido que eles estão a cada dia morrendo e apodrecendo” (p.29).

11) “Aumentaria o cuidado e a ternura das mães com seus filhos, ao ficarem seguras de que seus pobres bebês estão com a vida encaminhada (…) deveríamos notar uma saudável competição entre as mulheres para ver qual delas levaria ao mercado a criança mais gorda” (p.32).

12) “Os homens passariam a gostar de suas mulheres durante o período de gravidez, tanto quanto gostam de suas éguas ou vacas prenhes, ou de suas porcas a ponto de parir, e não se disporiam a bater nelas ou dar-lhes pontapés, por medo de um aborto” (p.32).

Expostos esses 12 insumos, um para cada ano de morosidade do PL 5.921, entendo que nossos parlamentares ficarão mais confortáveis para tratar dos diversos modos de devorar crianças existentes na atualidade. Mas antes de prosseguirem na cívica luta por ganhos econômicos com base na infância, peço vênia às suas excelências para, parafraseando Swift, pedir que perguntem a si mesmos se não considerariam uma grande felicidade se tivessem sido vendidos como comida quando tinham apenas um ano de idade!!!