Uma noção de contemporâneo
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 22 de abril de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O primeiro trabalho que li do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940 – 2015) foi “As veias abertas da América Latina”, uma edição publicada pela editora Paz e Terra, com capa branca e título em letras vermelhas, todo em caixa alta. Tenho uma vaga lembrança de que foi o padre Mourão, vigário de Independência na década de 1970, quando o livro foi lançado, que me emprestou um exemplar dessa obra ao mesmo tempo complexa e esclarecedora.

Não sabia praticamente nada do que significava “América Latina”, enquanto expressão política. Na minha curiosidade adolescente, o importante naquela leitura seria conhecer mais sobre países que eu tanto gostava de pintar nos mapas das estimulantes aulas de geografia da dona Ozanira. Agarrei-me ao exemplar emprestado e saí me perdendo e me achando em suas páginas até descobrir que o lugar onde eu morava, mesmo sendo no interior do Ceará, fazia parte de algo maior, de um continente secularmente pilhado e, naquele momento, governado por ditaduras militares patrocinadas pelos Estados Unidos.

Foi com a leitura do livro de Galeano que comecei a me dar conta de algumas rejeições que esbocei em estranhos episódios que marcaram a minha infância. Um deles foi quando o então general-presidente Médici (1905 – 1985) visitou os Inhamuns para ver a seca de perto e integrei a legião de estudantes que ficou enfileirada horas e horas ao sol, esperando por ele e sua comitiva. Aquelas movimentações não me faziam bem, me deixavam confuso e eu não conseguia me enxergar como contemporâneo daqueles homens que se apresentavam como os mandatários do país. Sentimento parecido eu havia tido ainda menorzinho, quando os homens de preto da TFP, com seus estandartes vermelhos e leões dourados, passaram em frente a nossa casa aos gritos de “Tradição, Família e Propriedade”.

Décadas depois, lendo um pequeno conto intitulado “A arte e o tempo”, em outra obra de Eduardo Galeano, foi que clareou para mim uma noção de contemporâneo adequada ao que sinto e ao que penso. Nesse texto ele fala de alguém que, ao circular por Buenos Aires, Paris e tantos outros lugares, vive encontrando pessoas com cheiro de medo e sente que essas pessoas não são suas contemporâneas. Fosse aos dias atuais, essa expressão de temor estaria mais espalhada ainda pelos sítios virtuais distópicos, que, com seu excesso de informações, exercem atualmente um controle medieval nas comunicações mundiais.

Compreender quem são os meus contemporâneos é, para mim, um esforço constante e de difícil entendimento, pois tendemos a considerar nossas contemporâneas as pessoas que ocupam o mesmo estágio de tempo cronológico no qual nos localizamos por conectivos simples. As ideologias geracionais, com seus burlescos anseios de distinção épica, contribuem muito para turvar a grandeza da contemporaneidade em suas extensões de plenitude megacultural e existencial, para além da historicidade.

De tanto querer descobrir quem são os seus contemporâneos, o personagem de Galeano chegou a uma conclusão, que assumo também como minha: “Existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos”. (O livro dos abraços, p. 242, L&PM, 1991).

A morte de Eduardo Galeano, no último dia 13, não vai fazer com que ele deixe de ser meu contemporâneo. Seus textos seguem a me dizer coisas que ele ouviu, refletiu e, como um irmão mais velho, ofereceu como palavras em movimento a quem quiser zanzar por seus nexos profundos. Tive vontade de conhecer pessoalmente esse meu contemporâneo uruguaio, que nasceu duas décadas antes de mim, mas que, em muitos momentos, o percebia como alguém de cabeça bem mais nova e arejada. Por uma questão de mudança na sua agenda de trabalho, não nos encontramos certa vez no Café Brasileiro, que ele frequentava na Ciudad Vieja, em Montevidéu.

O certo é que há muito do senso galeano de contemporâneo no que escrevo. O meu mais recente livro-cd “Invocado – um jeito brasileiro de ser musical” (Armazém da Cultura) atesta claramente essa noção. Todo o texto foi construído por conectivos cruzados, por sentimentos de mediação contidos na trama da narrativa. Nele, os elementos argumentativos migram na atemporalidade, revelando proximidade do que parece distante.

O exemplo mais nítido dessa arregimentação de conectivos é a música “Dança de Negros – Batuque”, composta por Alberto Nepomuceno (1864 – 1920) em 1887, que está no disco-capa do livro, gravado pela banda Dona Zefinha, com letra em parceria da cantora guineana Fanta Konatê, com o músico e produtor paulistano André Magalhães e eu, sendo que Nepomuceno é o de menor idade desse grupo, pois tinha apenas 23 anos quando fez a parte dele. Sim, são meus contemporâneos.