As ideias são como nuvens que passam livremente pelo céu, mudando de forma e de sentido ao sabor dos ventos. Algumas se dissipam e perdem força, enquanto outras tomam corpo, ao serem percebidas por olhares atentos. A figura dos pensamentos capazes de se tornarem ação pode também ser associada a velas de jangadas em alto mar, quando estas usam o sopro dos ventos para seguir suas rotas, muitas vezes contra as próprias correntes de ar.
Por conta da crônica Vela (V&A, 05/11/2019), que escrevi como pano de fundo e convite à reflexão sobre o que temos sentido nos tempos difíceis em que vivemos – expressado musicalmente na parceria homônima que fiz com Ronaldo Lopes, interpretada por Nayra Costa –, descobri que o artista visual Bené Fonteles e eu temos a mesma paixão e admiração pela jangada, sua sofisticada tecnologia artesã e seu fabuloso alcance existencial.
Bené lembrou-me de que as colunas do Palácio da Alvorada e do Palácio do Planalto foram inspiradas na vela de jangada cearense e que tais suportes de sustentação, ao lado das clássicas colunas gregas, estão entre as mais belas da história da arquitetura mundial. São realmente lindas, elegantes e causam a impressão de que sobre elas os prédios flutuam; são poemas candangos, estruturados com esse elemento náutico, ao mesmo tempo mínimo e imenso, que faz parte do construto psicológico e cultural do Ceará.
O vínculo com o devir, presente na linguagem das velas, as fazem presentes ainda na bandeira de Brasília, em forma e conteúdo. O brasão do estandarte da capital do país é um composto de velas, dentre as quais destacam-se duas velas brancas, verdadeiras, de algodão, e um lema latino: Venturis Ventis, que quer dizer “ventos vindouros”. Diferentemente da atual e capciosa vulgada da velocidade e da incerteza, a vela de jangada carrega um substrato mitopoético junguiano que projeta o viver para além da rapidez e da imprevisibilidade.
Dei-me conta de tudo isso após receber do Bené Fonteles a imagem de uma bandeira que ele fez para o Ceará, com a heráldica em marca d’água e toda a parte verde e amarela pintada de branco, ficando colorido apenas o ‘miolo’, onde tem o sol, o farol, o mar, a jangada, a serra, o sertão e um coqueiro. Tivesse visto essa obra antes de concluída, eu teria sugerido manter a carnaúba copérnica como representação verde. De todo modo, vejo a ideia da bandeira branca cearense como oportuna para um Estado que tem muito a contribuir com os rumos brasileiros.
A vela de jangada, ponto branco comum da velha e de uma desejável nova bandeira, é a cearensidade tomada por seu signo essencial de liberdade, batendo inflada e calorosa, com potência eólica e solar, o coração da bravura, da fé, da criatividade pragmática e da habilidade de conduzir-se por nevoeiros, ventanias e calmarias.
A degradação social e política que abala o Brasil requer posturas simbolizantes convergentes onde for possível. No mastro, ao lado da Bandeira Nacional, mas não mais a imitando, a Bandeira do Ceará, em branco de paz, retangular ou em forma de vela, que não é de acender, nem de velar, anunciaria o espírito de um povo que faz da agilidade e do enfrentamento constante da imprecisão um jeito de ser e de navegar, tendo como leme a própria vela e sem se deixar tragar pelo medo de ter como porto seguro a ilusão do horizonte.