Uma poética da brasilidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 02 de Junho de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Ele chama de “Mátria” a terra berço, o lugar onde nos fundimos culturalmente, a pátria em sua inspiração feminina. Na aula-espetáculo de Antonio Nóbrega, realizada no teatro do Centro Dragão do Mar, na sexta-feira passada (27), o artista pernambucano dançou, cantou, recitou e refletiu sobre a miscelânea cultural brasileira. Essa poética da brasilidade integrou o circuito de lançamento do novo edital do programa “Rumos Educação, Cultura e Arte” do Itaú Cultural.
O momento pede por melhor entendimento do que chamamos de Cultura Popular Brasileira. O País está vicejante e o seu patrimônio imaterial é um diferencial comparativo e competitivo que não deve ser negligenciado na agenda do desenvolvimento integrado e integral. A escolha de Nóbrega para fazer a associação de cantos e danças a esse discurso é perfeita, pelo que ele representa como artista de consistente consciência corporal, musical e política, com relação ao sentir e ao fazer artístico-cultural.
Na abertura de sua da aula-espetáculo, ele conta do esforço que tem feito nas últimas quatro décadas para se familiarizar com o universo da nossa energia inventiva sempre em busca de expansão, recriando-a nos mais diversos palcos. A síntese que faz em “Mátria – uma outra linha do tempo cultural” começa com três rápidas coreografias, com as quais desenha em passos e gestos o espírito negro, nativo e branco das famílias étnicas fundadoras do nosso maravilhoso estoque cultural.
O modo e a propriedade com que Antonio Nóbrega aborda a evolução das expressões da cultura popular e, de dentro dela, a arte refinada dos grandes autores brasileiros, encontra paralelo na fala do compositor russo Igor Stravinsk (1882 – 1971): “Brahms nasceu sessenta anos depois de Beethoven. De um a outro, e sob diversos aspectos, a distância é grande; eles não se vestem da mesma maneira. Mas Brahms segue a tradição de Beethoven sem tomar emprestadas suas camisas” (Poética Musical, p. 59, Jorge Zahar, Rio, 1996).
Nóbrega, assim como Stravinsk, refere-se ao senso da tradição, enquanto necessidade natural de estar sempre fértil à produção do novo. E sai tecendo em significados contemporâneos alguns registros das manifestações de índios domesticados, negros escravizados e brancos periféricos, que criaram as bases da cultura popular brasileira: “Vamos vadiar / no claro da lua / na beira da praia / na roda da saia / vamos vadiar”. Um fio vai puxando o outro e entra na roda o performático Coco da Lagartixa e o bem-humorado Romance de Clara Menina com D. Carlos de Alencar, com ela “nua da cintura pra cima” e “nua da cintura pra baixo”.
Nessa primeira semeadura os cantos não têm autor individualizado. Tudo acontece espontaneamente dentro das movimentações de oralidade. Ao discorrer sobre a grande família de espetáculos populares, como o bumba-meu-boi, maracatu, caboclinhos, reisado e cavalo marinho, Nóbrega procura com discreta didática mostrar as semelhanças existentes no universo constitucional dessas manifestações; suas figuras dramáticas, míticas, máscaras, vestimentas lantejoulantes, coro de dançarinos e uma rítmica caracterizada em tempo musical que se prolonga com a própria inspiração dos temas.
Com o passar das décadas o processo que Antonio Nóbrega denomina de acasalamento trafega geração após geração até seu cruzamento com a cultura da classe dominante, por muito tempo reservada aos salões do Brasil imperial. Assim, os músicos populares lançaram mão das modinhas, valsas e polcas para improvisar, fazer modulações e tocar, em serenatas e bailes de rua, uma música “fluida, malemolente e chorada”, que deu origem ao gênero brasileiro conhecido como Choro.
A aula-espetáculo “Mátria – uma outra linha do tempo cultural”, de Antonio Nóbrega, bem que merecia ser gravada, editada e distribuída aos educadores que estão com a sublime e desafiadora missão de trabalhar a Educação Musical nas escolas. Mais do que uma fonte de pesquisa, seria uma super-referência. O professor, como o personagem do frevo “Rosa dos Ventos”, que ainda anda pelo avesso, certamente vestiria seu adereço para a festa que virá. O Brasil precisa de material de apoio como o Mátria para poder se enxergar nas criações anônimas e nas obras de autores como Nelson Cavaquinho, Cartola e Dorival Caymmi, entre os lembrados por Nóbrega e tantos outros.
Além de toda uma conceituação da poética brasileira, o trabalho aborda ainda o balanceamento que precisa ser feito entre as polaridades masculina e feminina das variantes da nossa cultura. A valorização da cultura popular, segundo Nóbrega, é uma alternativa ao princípio masculino, que vem da racionalidade intelectual e que ainda predomina no Brasil. A cultura popular, nascida na intuição, tem forte componente feminino na sua dimensão lúdica, sensorial e mítica. Está na alma comunitária, solidária, brincante e despojada das pessoas mais simples, que a produzem e a consomem, simplesmente porque a condição de ser cultural faz parte da vida e do viver. Ponto.
A prevalência do atributo feminino na cultura popular é enriquecedora. O feminino está sempre mais afeito à compreensão do outro. Nóbrega diz que “a riqueza não está quando a gente fecha, mas quando abre”. Ilustra sua afirmativa estimulando a plateia a dizer o que é a Capoeira. “Um jogo”, exclama alguém; “uma dança”, acrescenta outra voz; “uma luta”, pronuncia uma mulher na cadeira da frente; “uma filosofia”, complementa o homem em pé no balcão ao fundo. É tudo isso e muito mais, resume Antonio Nóbrega, destacando o caráter de manifestação múltipla da capoeira, construída nos matos e nos terreiros por negros, índios e brancos excluídos.
A substância do feminino que a cultura popular guarda dentro de si não pode ser confundida com questão de gênero, adverte Nóbrega. O feminino, bem como o masculino, são partes interdependentes, opostas e complementares do humano. “É o que está classificado pelos chineses como yang e ying e pela psicologia analítica junguiana como animus e anima”. O avanço na compreensão e na valorização da criação coletiva que experimentamos atualmente no Brasil, por meio de programas oficiais, como os “Pontos de Cultura”, e da iniciativa privada, como o “Rumos Educação, Cultura e Arte” contribui para a calibragem do nosso modo de ser.
A cultura da classe dominante, como bem lembra Nóbrega, é uma cultura européia de origem greco-latina e judaico-cristã, alicerçada no padrão masculino. O deslocamento para o padrão feminino, de gênese nativa, negra e da parte branca periférica, passa a apresentar um velho problema implícito nesse tipo de reflexão e que, para Stravinsk, é “um problema para o qual todo homem que abre seu caminho pelo reino da dessemelhança – seja ele um artista, um filósofo ou um teólogo – é inevitavelmente atraído por força da própria estrutura de seu entendimento” (idem, p. 125/126).
A aula-espetáculo de Antonio Nóbrega reforçou em mim a compreensão do tanto que precisamos deixar fluir o feminino existente nas nossas manifestações artísticas e culturais. Em outra frequência, escuto a MPB-rap de Caetano Veloso dizendo: “Eu não tenho pátria / tenho mátria” (Língua). São duas vozes distintas, falando de um jeito mais afetuoso, dedicado, alegre e maternal de estar no mundo. Não é à toa que Nóbrega encerra cantando “João Valentão” (Caymmi), o brigão, que relaxa na praia, quando sente que “não há sonho mais lindo do que sua terra”. E não há.