Vale-cultura, qual?
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 04 de abril de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A ausência de uma política cultural, orientadora das manifestações simbólicas para a nossa vida social e econômica, faz com que desperdicemos mais energia do que o necessário com as mais simples movimentações em favor do que dá sentido aos estilos de vida da nossa coletividade. O exemplo mais visível desse problema é a polêmica que vem rolando por conta do vale-cultura, mecanismo do programa Cultura do Trabalhador, do Ministério da Cultura (MinC), que permite a pessoas empregadas terem um recurso mínimo para gastar com produtos e serviços culturais.

A lei 12.761, de 27/12/2012, que institui o vale-cultura, já foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff e está faltando ser regulamentada para entrar em vigor no segundo semestre deste ano (2013). Apesar de o texto legal esclarecer que o programa visa possibilitar o acesso e a fruição a atividades de cunho artístico, cultural e informativo, produzidos em qualquer formato ou mídia, que se enquadrem nas áreas de artes visuais, cênicas, audiovisual, literatura, humanidades, música e patrimônio cultural, são muitas as controvérsias na hora de definir o funcionamento do programa.

É normal o aparecimento de toda sorte de lobista na fase de regulamentação de um projeto de lei que envolve mudança de fluxo de dinheiro e novos mercados. Como falta substância estratégica para a cultura no Brasil, o debate degringola para questões de menor importância, como questionamentos se jogos eletrônicos (games) podem ou não ser considerados produtos culturais, ou se assinaturas de TV a cabo devem ou não ser incluídas nas ofertas contempladas pelos benefícios do vale-cultura.

A questão de fundo não é se isso ou aquilo é arte ou canal de fruição cultural; o que deveria estar puxando a pauta da regulamentação do vale-cultura deveria ser o entendimento de quais as atividades culturais que, por decorrência ordinária do mercado já estão massificadas, e quais as que precisam ser popularizadas, por meio de incentivos públicos para poderem ser percebidas, consideradas e apreciadas pela população. Não se trata de exclusão do que quer que seja, mas de valorização de uma riqueza injustificadamente sufocada pelos ditames da ideologia do consumismo.

A lenga-lenga e o estica e puxa de interesses localizados trilham o raciocínio de que não sendo para consumo de blockbusters e de espetáculos hegemônicos, dominantes no mercado sem necessidade de incentivos, pouca gente vai dar atenção ao vale-cultura. Inclusive a iniciativa privada que, ao aderir, se beneficia de renúncia fiscal da União. Óbvio que o programa precisa ter uma adesão que justifique a sua implementação em todo o território nacional. Mas projeto de Estado é assim mesmo; pode muito bem ser de longo prazo. O importante é que o vale-cultura force uma demanda na sua função de formador de públicos culturais.

Caso além dos produtos e serviços massificados não haja atrações e equipamentos estruturados o suficiente, é porque essa parte da cadeia produtiva da cultura está mesmo sem condições de competir com o marketing, a publicidade e a propaganda do mercado de consumo. Se tudo estivesse tão disponível, não precisaríamos do vale-cultura. As ofertas de produtos e serviços culturais da nossa diversidade aparecerão mais e mais à medida que começar a existir um poder de compra sistemático, tanto nos bairros das grandes cidades quanto nos pequenos centros urbanos.

Do jeito que está, os artistas, os escritores, os coletivos e os produtores culturais ficam muito à mercê dos palcos e apoios oficiais, onde é comum a concentração de poder e de controle de pautas, por razões muitas vezes pouco culturais. Com o vale-cultura norteado para a diversidade e não para a hegemonia, o direito de oportunidade será fortalecido, quer para quem tem o que mostrar, quer para quem quer usufruir do potencial da nossa socioeconomia criativa. Assim, essa ferramenta de elevação da sensibilidade estética, da reeducação do olhar e da variedade de lazer e entretenimento permitirá novas descobertas, como prática cultural fortalecedora da vida em sociedade.

O vale-cultura precisa de condicionantes claras para garantir a sua força transformadora em um país que acaba de inventar uma nova classe média, do ponto de vista do poder aquisitivo, mas que ainda está longe de ser configurada como uma classe cidadã, com interesses definidos e influência organizada em favor do equilíbrio social, econômico e político. Antes de qualquer coisa, o vale-cultura deveria estar associado ao papel do Estado na dinâmica cultural, alargando as portas do nosso patrimônio imaterial para essas pessoas, potencializando o que o mercado de massificação não tem interesse.

Ao definir para que serve mesmo o vale-cultura, o MinC naturalmente indicará o seu uso e terá facilitado o seu controle. Pode ser algo estrito, como estar em linha com os projetos apoiados e patrocinados pelas leis de incentivo, pelas empresas estatais ou projetos com fins educacionais, e pode ser no sentido lato, dentro de parâmetros voltados aos interesses culturais do País. Neste caso, o conceito de “interesses culturais do País” fica comprometido pelas restrições impostas pela inexistência de uma política cultural.

Seja como for, não há razão para temermos o estabelecimento de algumas condicionalidades. Isso é comum em políticas de benefícios. No Programa de Alimentação do Trabalhador a regra diz que a qualidade nutricional das pessoas passa por cardápios saudáveis, com frutas, verduras e legumes. O vale-cultura também poderia exigir produtos culturais saudáveis, com qualidade artística, valor comunitário e alcance social. Não sei se seria o caso, em se tratando de vale-cultura, mas quando um trabalhador recebe o vale-refeição ele sabe que só pode utilizá-lo em uma rede de estabelecimentos cadastrados.

Um exemplo bem contundente de êxito no uso de condicionantes é o Bolsa Família, cuja transferência de renda está vinculada a direitos sociais básicos, como a educação. O Bolsa-Atleta também tem seu recorte bem definido, ao priorizar pessoas com alto rendimento em suas modalidades e que integram os programas dos Jogos Olímpicos e Jogos Paraolímpicos. A Bolsa Verde subsidia famílias que desenvolvem atividades de preservação ambiental em unidades de conservação, reservas extrativistas e assentamentos de reforma agrária. O programa Brasil Carinhoso e a Rede Cegonha estão focados respectivamente na infância inclusiva e na melhoria da qualidade do planejamento reprodutivo.

Se observarmos bem, nenhum desses programas está excluindo nada. É uma questão de clareza, de política, de saber realmente a finalidade de cada um. Não vejo qualquer polêmica em torno do vale-transporte porque o seu objetivo está limitado ao deslocamento residência-trabalho-residência, não sendo permitido que a ele se dê qualquer outra destinação. Até o vale-alimentação, que é aberto a compras em supermercados, a regra determina que, por exemplo, produtos de higiene e limpeza estão fora do seu escopo, sendo o cartão válido apenas para gêneros alimentícios.

Valendo mesmo, o vale-cultura deveria possibilitar, sobretudo, a quem ganha até cinco salários mínimos, como está na sua prioridade, uma experiência de escolha engrandecedora, capaz de elevar o nível estético da população. Para isso, o MinC e os demais órgãos e agentes de fomento à cultura poderiam contribuir para situar o usuário, colocando-o no circuito da nossa pluralidade e da diversidade e deixando-o realmente livre nas suas decisões de compra. Digo isso porque muitas das pessoas que poderão passar a ter um vale-cultura nunca tiveram a chance de saber do que se passa além das vitrines da cultura massificadora.

Em tempo: coloquei essas opiniões sobre o assunto em debate com o professor Humberto Cunha, especialista em Direitos Culturais, gravado ontem no programa 180º, da TV Unifor (Canal 14 da NET), dirigido pelo professor Felipe Barroso, que irá ao ar na próxima semana e em seguida ficará disponível no site da Universidade de Fortaleza.