Valton Miranda e o fetichismo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 22 de Outubro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Nada é mais prazeroso na leitura de um livro do que quando o assunto abordado é atraente e autor é bom. Em “A Aura Enfeitiçada – O Fetiche como Espetáculo”, de Valton Miranda (Annablume, SP, 2009), encontramos esses dois atributos bem resolvidos: um tema urgente, que trata do que se passa na personalidade individual e na mentalidade coletiva, em pleno declínio da sociedade do consumismo, escrito por um psicanalista e militante político respeitado e admirado por sua integridade moral, independência intelectual e capacidade de manifestar claramente muito dos transtornos do estado confusional de um mundo e um tempo marcados por intensa complexidade.

Desvelar o fetiche que ronda a cultura da vaidade e que acoita o narcisismo do fundamentalismo de mercado parece ser a mola propulsora da obra de Valton. A fetichização social que provoca o fim das evidências, o ocaso da arte e a alienação do sujeito perpassam as páginas do seu livro chamando à reflexão quanto ao fato de que tudo parece igualmente vendável, desde objetos, pessoas, sentimentos e valores, “devidamente empacotados em papel brilhante capaz de produzir uma ilusão imagética que distorce a realidade”. Com propriedade teórica e prática, ele fala da estrutura, da complexidade e do dinamismo da situação narcísica contemporânea.

O fetiche da mercadoria é referido no texto de Valton como a escapatória do sujeito perturbado pela impotência diante do cerco da ideologia do consumismo, que falsifica desejos e mitologiza a apreensão da realidade. O que o autor designa como alienado é o indivíduo acrítico e pós-neurótico que não se interessa por compreender nada, visto que a saciedade dos seus apetites está amplamente prometida nas falas de propaganda e marketing. No entendimento de Valton é exatamente da tomada de consciência que os indivíduos e os grupos narcisizados fogem. Por isso, vivem prisioneiros de si mesmos, oscilando entre o amor maníaco e o ódio invejoso do espelho.

Quando afirma que o fetichismo psíquico e mercantil está na gênese da cultura narcísica e do indivíduo narcísico, Valton dialoga com o conceito de “economia psíquica” de Dany-Robert Dufour. Em “O Divino Mercado – A Revolução Cultural Liberal” (Companhia de Freud, RJ, 2009), o filósofo francês ressalta que além das mudanças extremadas ocorridas na realidade econômica e social, a sociedade passou a enfrentar uma acentuada alteração na noção de sujeito, pela transfiguração das referências que o constituem. Por sua vez, as palavras de Valton antecipam-se a essa percepção, realçando que o fetiche age na organização psicopatológica da paranóia e do narcisismo, combinados com sua produção material na sociedade de mercado.

As ilustrações utilizadas como suporte às reflexões em “A Aura Enfeitiçada” são de grande valor para a sua compreensão. Valton compara, por exemplo, o vigor do comprador compulsivo com o vigor do homem-bomba. Faz isso para revelar que por trás do consumo inconseqüente está o desligamento familiar e social e o incremento do narcisismo agressivo de um; e para dizer que por trás do cinturão explosivo está um dispositivo semelhante no inconsciente do homem-bomba que o leva ao sacrifício do outro. Ambos experimentam em seus delírios teológicos-econômicos e teológicos-políticos, o fundamentalismo como recurso da condição primitiva do psiquismo humano. Inventei agora essa expressão “teológico-econômico” inspirado no pensamento crítico de Dufour, quando ele diz que Adam Smith (1723 – 1790) era um teólogo escocês que transformou egoísmo em virtude.

Ao salientar aspectos da psicopatologia coletiva, Valton Miranda faz descontraídas analogias que dão leveza à dureza do tema. Ele compara o indivíduo perverso, que utiliza o chicote como instrumento para obtenção de prazer sexual, com o comprador compulsivo, que não resiste ao desejo de obter determinada grife/marca, e com o consumidor compelido ao mundo ilusório das telas de televisão, computador e celular. Assim, coloca o fetiche como pano de fundo de todas as violências e em contraponto à abstração simbólica e ao pensamento descolado do feitiço que transformou os vínculos sociais em código de barras.

No título “A Aura Enfeitiçada – O Fetiche como Espetáculo” está a síntese da inquietação de dois pensadores, um alemão e um francês, a quem Valton tomou emprestado conceitos que ajudam a construir seu tema: o sentido de “aura”, aplicado por Walter Benjamin (1892 – 1940) para realçar a singularidade da arte e da experiência estética, e a noção de “sociedade do espetáculo” com a qual Guy Debord (1931 – 1994) criticava o suprimento pelo fetiche das ausências da existência real. Para chegar à expressão “sociedade do fetiche”, Valton recorre ao sentido de fetichismo como elemento mediador entre a subjetividade inconsciente e a aparência de concretude que há, tanto na consciência social quanto no pensamento individual.

A atualidade da obra de Valton Miranda, que mescla socialismo e psicanálise em estímulos marxistas e freudianos, tem na reverberação debordiana antevisões da encruzilhada entre a barbárie e a construção de um novo modelo civilizatório. Na década de 1960, Debord já chamava a aparente liberdade de escolha do capitalismo de “espetáculo difundido” e o aparente poder do proletariado do comunismo de “espetáculo concentrado”. No início deste mês de outubro de 2009, no dia 9, o historiador inglês Eric Hobsbawm fez uma conferência em Bosco Marengo (Alexandria), no Fórum Político Mundial, na qual deixa de lado o divisor comunismo/capitalismo para afirmar que a diferença de fato entre as ideologias não é uma questão de estrutura, mas de prioridades sociais e morais.

Com o fim do comunismo, simbolizado pela queda do Muro de Berlim (1989) e com fim do capitalismo, marcado pelo colapso do sistema financeiro neoliberal (2008), o mundo tende para o que chamo de social-ambientalismo participativo. Nessa perspectiva, o pensamento aurático de Valton e sua crítica à dinâmica de neutralização do sujeito pelo desejo ao objeto inalcançável, é de grande relevância à compreensão e transformação de um processo de sociabilidade movido pelo discurso imagético-digital e consumista que, como observa o psicanalista e militante político, resume o lócus da comunidade humana a uma geografia eletrônico-virtual, acima da historicidade, do tempo e da realidade objetiva.

Chegamos à fronteira do mundo hipermoderno, estamos em ponto de inflexão na história da humanidade. O aquecimento global, a explosão demográfica e a escassez de recursos naturais não comportam mais o egoísmo social vigente. As interpretações do tempo e espaço nascem com a própria percepção que temos de nós nessas dimensões. Por isso, a obra de Valton Miranda é tão urgente e necessária. Sob o domínio do fetiche a sociedade deseja, mas não aprende a amar, por estar presa ao imediatismo irrefletido do presente e à competição invejosa, característica da sociocultura narcísica.

Quem bom ler Valton Miranda, que bom saber da permanência da sua inquietude em favor do indivíduo criador e criativo, que, para existir, precisa das pressões autênticas do desejo e da fantasia humanos. Valton, que é piauiense de nascimento e cearense de vida proativa e utópica, fará 70 anos em novembro próximo. O livro “A Aura Enfeitiçada” é um presente com o qual ele brinda a todas as pessoas que, como ele, estão empenhadas a dar dignidade à vida pelo enriquecimento da experiência com a presença do outro.