Vamos pro mundo
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 4
Domingo, 24 de Maio de 1998 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A primeira pergunta que costumo me fazer ao pensar na música da América hispânica é: por que tanta variedade sonora, rítmica e estilística não consegue ir além do que foi cifrado pela camisa-de-força da estética colonial? Quer com sotaque indígena, europeu, africano ou norte-americano, é impossível escutá-la sem uma exclamação de descoberta. São revelações de elementais perdidos nessa paisagem com cheiro de sonhos de Bolívar (1).
Não se sabe ao certo o valor final da equação entre o que se perdeu com a chegada de Colombo, o que se ganhou com o choque cultural, nem para as qual horizonte apontam os fatos presentes que movem a música do continente, na pouco sinalizada curva do tempo.Situação que denota a nossa grande falta de conhecimento sobre os nossos vizinhos. A imposição neo-colonial de enquadramento do mundo no mesmo padrão, comumente chamada de globalização, encontra destacada inadequação aos desejos dessa gente.
O relacionamento do Brasil com o restante do continente tem o desvario de uma cabeça xifópaga virada para o mar. Com essa disfunção perdemos nós e perde o continente por estarmos de costas para ele. Não exercitamos a troca necessária de informações para termos as fortes referências culturais exigidas para a sobrevivência no mundo contemporâneo. E na guerra dos valores humanos que dão sentido à vida, não existe vácuo. O nosso universo musical está praticamente ocupado por futilidades do tipo Thalia e Carla Perez. É a lei do mercado desigual, recheada pela fabricação em série de “ídolos” obedientes, cujo trabalho acampa longe dos perigos da consistência artística.
A música autêntica da América hispânica vive presa ao conceito folclórico ou marcada pelo lirismo ibérico. As letras ainda tendem para a emoção rebuscada da poesia tradicional e a estrutura musical persegue o conservadorismo d’além mar. Quando, em meados dos anos 60, os compositores latino-americanos despertaram para uma estética mais elaborada, embora capaz de manter o viés popular, o poder das armas falou mais alto e abafou tais manifestações. Foi assim com Victor Jara, no Chile; com Daniel Viglietti, no Uruguai e com Gloria Martin, na Venezuela, entre tantos e tantos outros.
No Brasil, a corrente literária que oxigenava o pulmão dos criadores em muitos lugares do mundo, passou pelo coração de compositores como Geraldo Vandré e Chico Buarque. Nos Estados Unidos, ganhou vulto em vozes da estirpe de Joan Baez e Bob Dylan. E Paul Simon sobrevoou os Andes para colher “El condor pasa”. No final das contas, ganhamos um gênero musical rotulado de MPB e nossos vizinhos continentais ficaram didaticamente enroscados no campo do folclorismo. Não por intenção, mas por provocação e força militar. Violeta Parra reinventou a música popular mineira e camponesa da América Latina, mas é catalogada nas prateleiras do folclore.
O caráter anônimo, empírico e coletivo associado a trabalhos autorais vem sendo uma tentativa de dirigentes políticos, como forma de distanciamento da realidade. Um produto folclórico parece de tempos passados. Mas a sabedoria popular recorreu a um de seus valores mais intrínsecos,que é a transmissão oral, para garantir na mente das pessoas os cantos perseguidos pela exceção bélica. Assim, os autores da nova história seguem traduzindo os sentimentos das pessoas em forma de canções. Cada nó da censura (antes sangrenta, hoje velada) lembra um pano de batik e vai virando mancha no tecido de variados matizes que veste a arte latina.
O processo de atualização estética foi desacelerado. Salvo uma ou outra atitude isolada, como o trabalho do grupo Los Jaivas, ou o caso específico da espetacular escola de música experimental cubana (que combinou os gêneros caribenhos com jazz, roque, música formal e samba), o que se nota é uma estranha impotência de renovação. Às vezes fico imaginando como seria o repertório de Carlo Arena na interpretação rascante da viola aguda de Manassés. Evidente que maravilharia os ouvidos mais distintos do planeta.
Na festa brasileira, apesar da insistência das gravadoras transnacionais no mercado do lixo cultural, vivemos um momento estimulante. Retomamos parte do contato com nossas raízes em um processo inovador. Antônio Nóbrega e o mangue-beat saem do Recife para mostrar que somos plurais e sistêmicos. Armoriais e pop ao mesmo tempo agora. O segredo está no reconhecimento do outro e no fortalecimento da diversidade autêntica. Como América Latina e Caribe, temos muito o que compartilhar, na orquestra das raças. E que venha o mundo…
(1) Simon Bolívar (1783 – 1830). Anticolonialista venezuelano que comandou a luta pela independência da Colômbia, Venezuela, Equador, Peru e Bolívia.