A vida não começa e nem termina em nós. Estamos sempre no meio de alguma coisa, de algum estágio cultural, de algum tempo, de algum lugar. Essa condição pode ser percebida como fraqueza, mas pode ser também encarada como ânimo para o movimento de existir. Uma das chaves que servem para abrir o portal desse dilema humano entre a insignificância e a vastidão é a descoberta de que o grande prazer de viver está na destreza da nossa fragilidade ante a imensidão.
Em tempo de tempestade geopolítica e social como o que vivemos, a compreensão de que o nosso ponto de partida e de chegada é o meio nos livra das imagens de claridade produzidas em nome do destino e da vigília do que ficou para trás como fixação do que teria sido. Assumir a transcendência da percepção de fronteiras é uma forma de evocar mundos sem mundos e de estimular a travessia como essência da liberdade eco planetária.
Das invenções da humanidade voltadas para a condição existencial, a vela de jangada é a que mais me inspira, como símbolo da importância da simplicidade integrada à grandeza da vida que perdura enquanto muda. Observo a vela como uma valorosa mônada cultural em sua migração de instrumento de navegação para conceito focal de travessia ineludível entre margens. Numa conexão profunda de significantes o pescador navega com o mar e não contra ele.
A força estética da vela atua em muitos domínios. Contam que a recepção coordenada pelo pescador cearense Dragão do Mar (1839 – 1914) ao também abolicionista carioca José do Patrocínio (1853 – 1905) em 1882 foi de uma plasticidade espetacular. Velas de jangadas foram abertas simultaneamente, como uma revoada de borboletas na enseada do Mucuripe. Dois anos depois o Ceará passou a ser chamado de Terra da Luz, por ter abolido a escravidão quatro anos antes do Brasil
A vela, seja aplicada em arte pública ou no corpo, suscita muitas mensagens. Na Beira Mar, em Fortaleza, uma das esculturas mais bonitas e impactantes, do escultor cearense Sérvulo Esmeraldo (1929 – 2017), é uma jangada de pura leveza e vibração com sua vela branca de metal. Quando o meu filho Lucas, com 17 anos, foi estudar em São Paulo, não durou muito e ele procurou o tatuador Caio Garcia para fixar em seu braço direito a figura de uma jangada com vela aberta, em movimentos geométricos estilizados.
O formato triangular é um dos símbolos mais antigos da humanidade. Na bandeira do Estado do Ceará, a vela branca compõe, com um pássaro também branco, com o sol, o farol e a carnaúba copérnica, os elementos de nossa etnogonia. Vela é asa, dança, vento e movimento na rota do destino, tornando real o que somos por vias ontológicas sempre renovadas. Vela é convívio com o invisível costurado pela linha do horizonte entre o infinito exterior e o infinito interior.
A música Vela, que, em parceria com Ronaldo Lopes, lançamos nesses tempos de turbulências, com produção musical de Gustavo Portela e interpretação de Nayra Costa, é canção de travessia: “Vela que não é vela de acender / nem é vela de velar // Sopra o vento pra saber / se a jangada vai pro mar // Vela branca / verdadeira / molha o pano pra embarcar // Vela, vida do pescador / Vela, bandeira do Ceará”. Vela em estado de destino, de tempo, de imaginação. A esperança que sempre volta e o receio que sempre passa quando somos jangada e oceano.
Confira o vídeo: