Velha guarda da rabeca
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 11 de Setembro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O rabequeiro, ao lado do repentista, do cantador e do violeiro, integra uma força cultural milenar que foi transplantada para o nordeste brasileiro onde vicejou quase sempre na marginalidade. O tocador de rabeca e a arte de poetizar tangendo o instrumento mistura arabidade, ibericidade e nordestinidade na formação das essências sonoras brasileiras. Está nas insígnias dos estandartes armoriais de Ariano Suassuna, Cussy de Almeida, Antônio José Madureira e Antônio Nóbrega.
Quem anda nas feiras e escuta de longe os sons das rabecas é como quem anda no mato e escuta os sons das cigarras. Não se sabe bem de onde eles vêm, embora em ambos os casos esses sons vibrem como ardente recurso de atração que explodem de dentro de corpos querendo encantar. A voz rude dos rabequeiros e o som sujo das rabecas falam da vida e suas circunstâncias, de inspiradas paixões e dolorosos lamentos em cantigas de vontade de dizer, de rasgar do peito sentimentos intensos.
A rabeca encontrada nas praças, nas feiras, nas rodas de ouvintes e nos espetáculos das bandas performáticas voltadas para a cultura popular, como a Mestre Ambrósio, de Recife, e a Dona Zefinha, de Itapipoca, vem de uma tradição musical constituída por elementos indianos, mesopotâmicos (Iraque), persas (Irã) e gregos, que se embrenharam na vida nordestina, sem que essa gente oriental tenha atravessado o Atlântico e desembarcado nas caravelas coloniais.
Luís Soler, violinista catalão que na década de cinqüenta do século passado escolheu o Brasil para viver, salienta em seu livro “Origens árabes no folclore do sertão brasileiro” (Ed. UFSC, 1995), que a ocupação do sertão nordestino ocorreu em plena Renascença (séc XIV a XVI), período que recebeu grande influência dos árabes medievais, com destaque para o estudo da música como Ciência matemática e para a introdução na cultura européia dos instrumentos de cordas friccionadas com arco.
Para ele, a música renascentista jamais teria sido a mesma sem os empréstimos dos instrumentos árabes que foram adaptados como alternativa à polifonia das vozes humanas. E entre esses instrumentos estava o rabab (ou rebab), que evoluiu para rabeca, modificando seu formato, mantendo o som possante e estridente e sobrevivendo à sofisticação do violino e de toda a música sinfônica que se estabeleceu como padrão no chamado renascimento das artes.
Em uma investigação mário-de-andradeana feita por Gilmar de Carvalho, no período de 2004 a 2006, o pesquisador gravou depoimentos e execuções de rabeca com mais de uma centena de rabequeiros em mais de quarenta municípios cearenses. O material colhido nesse levantamento está reunido no livro Rabecas do Ceará (Laboratório de Estudos da Oralidade UFC/Uece), que conta com belas fotos de Francisco Sousa e inclui um cd com 43 preciosos registros sonoros. A edição, datada de 2006, acaba de sair das máquinas da Expressão Gráfica para cumprir seu papel primordial de dar perpetuidade à geografia humana da rabeca no Ceará.
Os rabequeiros nordestinos são remanescentes de uma escola de luteria primitivista, sustentada pelo conhecimento de carpintaria, de retelhadores de casas, de fabricantes de móveis e de construtores de embarcações populares. Em seu ímpeto de descobrir sonoridades perdidas, Gilmar conta que eles pareciam cristalizados diante das novas tendências em que a rabeca volta à cena musical com a retomada da tradição como pressuposto de uma criação contemporânea.
O tom do pesquisador é menos de felicidade pelo retorno do instrumento aos palcos, em espetáculos de bandas de música de raiz, de forró de rabeca e do pop-nordestinado, e mais de ressentimento pelo fato dessa visibilidade chegar “um pouco tarde” para a maioria dos rabequeiros tradicionais. Ainda que lastimoso nesse sentido, Gilmar de Carvalho afirma, no texto de apresentação do livro, que não há pessimismo em sua obra, por considerar a possibilidade de o seu trabalho vir a ser aprofundado no futuro “pela etnomusicologia, pela antropologia ou pela estética”.
Os textos do livro revelam com a fluência cativante da oralidade como os rabequeiros descobriram o instrumento, o que chamou a atenção de cada um para a rabeca, porque deu vontade de tocar e quais as conseqüências disso tudo em suas vidas. Os termos e as expressões utilizadas dariam para fazer um dicionário do Ceará de dentro. Além de preservar palavras e dizeres que atravessaram o tempo e os continentes pelo caminhar nem sempre percebido da cultura, Gilmar descreve com maestria a localização do encontro e coloca generosamente o leitor sentado ao lado para ouvir a conversa.
Os relatos de Rabecas do Ceará me fizeram recordar de uma conversa que tive certa feita com o lendário Cego Oliveira (1912 – 1997), no sítio Cipó, onde ele morava, nas cercanias de Juazeiro do Norte. Ao perguntar a ele qual a música que ele mais gostava de tocar, ele pegou a rabeca e tocou para mim uns trechos de uma velha cantiga de feira que adaptei com o título de “Serenata” e gravei, com a interpretação lírica de André Vidal, no meu cd Rolimã (Camerati, 1994). O que me atraiu naquelas passagens rascantes foi a remota sonoridade ultramarina e o seu caráter etiológico: “Minha gente eu vim de longe, eu vim de longe / somente a passear / a um chamado dos amigos / só se for por um perigo / eu vou faltar, eu vou faltar”.
Gilmar de Carvalho explica que os rabequeiros, por não estudaram teoria musical nem técnica de tocar o instrumento, atribuem a um dom, a paixão e a intensidade com que se dedicam a tocar rabeca de ouvido. O que eles traduzem como dom eu entendo como rastros semelhantes aos das pegadas vocabulares deixadas pela perna invisível da cultura. O exemplo disso pode ser escutado na composição cearabiense “A Rural”, de Neo Pi Neo, na qual o nosso costume de trocar a letra “vê” pela letra “r” é genialmente trabalhada em expressões que trocam “vai partir” por “rai´arribáa”; “Vamos ver o mar” por “Ramu rê u má”; “Não vá lá nadar / Você vai se afogar” por “Num rá lá nadá / Rocê rai s´afogáa”.
Assim como as palavras e as expressões antigas que permanecem como patrimônio coletivo profundo da nossa cultura, em algum lugar do passado, em alguma época não identificada, o som da rabeca ecoa na malha do tempo para dar permanência e sentido à vida dos rabequeiros. Não importa se isso acontece quando uma banda sobe ao palco ou quando numa feira um cego cantador toca rabeca, o importante é que a rabeca segue dando prosseguimento ao que o ser humano tem de mais seu, que é a capacidade de expressar sentimentos pela arte.
O artista pernambucano Antônio Nóbrega conta com indisfarçável satisfação que na adolescência tocava violino, mas que a sua vocação para brincante foi despertada pela rabeca. Em uma entrevista que concedeu à revista Caros Amigos (jan/2004) ele destaca a riqueza desse instrumento feito de madeiras diferentes, com técnicas diferentes e muitas vezes pelo próprio rabequeiro. Destaca também o fato de o rabequeiro não ter formação musical e, por conta disso, empregar na sua maneira de tocar e de cantar uma série de floreios e portamentos que expressam com plena autenticidade um temperamento e um pulsar coletivos. Tais observações se coadunam perfeitamente com as falas e os sons da velha guarda da rabeca fixados no instigante livro de Gilmar de Carvalho.