Versões de olhares em noites do sertão
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 01 de abril de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Entre uma ou outra fase da lua, a noite do sertão tende a variar entre preto, prata, cinza, branco e leves tons amarelados e azuis, conforme as nuvens do entorno do disco lunar, o pontilhar das estrelas e as nebulosas das constelações. Movido por essas referências pessoais fui até a Galeria de Arte do Ibeu Aldeota ver a exposição fotográfica “Das utopias: enquanto o sertão dorme”, de cinco fotógrafos urbanos em usufruto artístico de feriados e finais de semana no interior de Irauçuba, Itapajé, Iguatu, Itapiúna e Quixeramobim.
Deixei de lado o meu olhar, e logo tomei consciência de que essa não é uma exposição de fotografias das noites do sertão, mas de fotografias nas noites do sertão, com atenção focalizada em efeitos visuais, com longas exposições de captura de imagens e detalhes em pintura de luz com lanterna (light painting). Passei a observar isoladamente uma a uma e em conjunto, como parte de uma proposta rica de versões do olhar e de mudanças consubstanciais, ou seja, um procedimento criativo em que a forma de registrar se altera, mas a essência do objeto não.
O sertão noturno aparece nas fotos “das utopias” com nova força de entendimento da estética da caatinga na construção de modos alternativos do fruir da vida. Ele não está posicionado por determinação de qualquer teoria da luz e nem segue as sombras das regras. Os autores nem fotógrafos profissionais são; o Eloízio Jr. é empresário, o Gê Jota, contador, o Gilson Campelo, funcionário público, o Marcelo Melo, corretor imobiliário, e o Otávio Menezes, advogado.
Nesse exercício de investigação de efeitos e de testes visuais, os cinco amigos ultrapassam a característica de observadores que simplesmente fazem interferências por erros e acertos. Sem relutância estilística eles criam cenas ao fixar variedades de formas, cores e atmosferas, motivados pela recompensa da descoberta. A exposição, aberta dia 21/03, com duração até o dia 25/4, de quarta a sábado, das 16 às 21 horas, é uma descrição do que o grupo andou aprontando, com registros impossíveis de repetir, momentos únicos e vínculos próprios com os lugares por onde andaram.
A aventura do grupo na criação de ilusões é tanto expressão de prazer na prática do sentimento do belo como escape inteligente à massificação de desejos e quereres na contemporaneidade. Ao extraírem satisfação dessa aplicação técnica, desse adicional de beleza do semiárido, eles produzem uma distinção enquanto pessoas e fotógrafos, cuja função é mais destacar do que modificar; é mais vivenciar do que propriamente se credenciarem como fotógrafos ou coisa que o valha.
O que vi nas imagens feitas por Eloízio, Gê Jota, Gilson, Marcelo e Otávio não são apenas árvores, casas e céus. Entre silhuetas e nuvens carregadas para chover, apenas duas fotos apresentam figuras humanas; uma, de lanterna na mão, esculpindo um feixe de luz no escuro; e outra, debruçada sobre uma mesa tendo como sentinela uma rede armada e uma garrafa de cachaça vazia, enquanto tons de amarelo, verde e azul entram e saem pela porta e pela janela escancaradas.
Muitos insights curiosos passaram pela minha cabeça na rápida visita que fiz sábado passado (28) à mostra “Das utopias: enquanto o sertão dorme”. O destaque a cores localizadas em casas e na paisagem p&b chegam a lembrar dos antigos retratos pintados, a arte de recriar fotografias com tinta. Há um quê também de iluminação de gruta, com aqueles efeitos cromáticos todos, valorizando relevos e definindo contornos.
O reflexo da iluminação pública das cidades próximas às locações reforçam em alguns trabalhos um ar expressionista, no que esse termo quer dizer no sentido de respeito às circunstâncias internas da criação sobre o que está quieto em si mesmo. Ao tempo em que o sertão dormia, eles foram registrando o que consideraram essencial, com eloquência gráfica e emocionalmente dirigida, em uma interpretação simbólica das noites, lançando mão do recurso do pensar ilusório inerente à arte, à religião e à filosofia.
Em uma das fotos, lembrei-me do trecho da música “Estrelas Riscantes” (1998), que fiz com Abidoral Jamacaru para dizer do céu catingueiro que existe guardado em nós: “E imerso no céu de estrelas riscantes que não se foi / “É bumba-boi, zabumba-boi”. Os aspectos cosmológicos fixados em seguidos cliques de um mesmo céu, sobrepostos na mesma imagem, reflete o contraste das estrelas com ossadas de bichos à luz de lanterna; quase uma visagem quebrando estereótipos, mesmo que haja aí um recorrido ao clichê da seca.
A despeito de suscitarem múltiplas associações, as fotografias expostas não são nostálgicas, em seus retratos e relatos do quanto podemos ver a realidade e nos relacionar com ela de maneiras diferentes. A exposição reflete a atração pela fantasia, pela busca de inspiração em tempos de descrenças. Esse conjunto de fotografias sem discursos pré-concebidos nos diz em suas entranhas silenciosas que, antes de tudo, o que vale é a amizade, a convivência, o fazer juntos e a elaboração imaginativa.