Vida e morte no Carnaval
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Domingo, 17 de Fevereiro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Heureca! O segredo da não-violência é ter motivo para ficar junto! Tomei essa consciência depois de assistir ao desfile de todos os blocos de maracatu na avenida Domingos Olímpio. Passei horas e horas naquele fervilhar de gente e não presenciei qualquer ato de agressão. Pelo contrário, tive a felicidade de andar despreocupado pelo asfalto, apreciando toda a alegoria e a simpatia dos nossos brincantes. Pessoas simples apresentando suas armas de criatividade e glamour, valorizando o espaço público, dançando sossegadas por onde passam os carros e a pressa do cotidiano.

A movimentação em torno de razões comuns deixa esses momentos mais iluminados. Nas calçadas e nas arquibancadas, adultos e crianças mimam os semelhantes, aplaudindo passos, fantasias e os efeitos especiais da alma. É um desfile a pulso de coração e técnica de solidariedade, proveniente dos bairros. A alta-costura dos galpões de periferia, somada à alegria de poder tocar as estrelas inatingíveis da imaginação, resultam numa espetacular celebração do desejo.

A trama da inversão é própria da natureza do Carnaval. Mudam-se as regras e a hierarquia para o desfile de risonhos guerreiros de estandartes pretos, brilhantes e berrantes, em cenas visuais do maracatu. As loas são enredos tautológicos de louvação e afro-brasilidade. Tisna com brilhantina simbolizam rostos maravilhados pela sabedoria do respeito ao outro. Por trás dos lances desinibidos dos atores desse grande encontro esconde-se um dos enigmas da paz: o querer coletivo. A motivação para as pessoas estarem ali não vem de fora para dentro, não é induzida por insistentes promessas de marketing. Cada indivíduo, cada grupo, cada bloco leva consigo a vontade própria de se exibir como atributo de uma expressão cultural.

O que distingue este tipo de evento das micaretas é a diversão sem esquizofrenia. No curral dos carnavais fabricados pela indústria do entretenimento, a violência é o retrato de uma elite entristecida e solitária em sua indigência cultural. Na avenida dos maracatus tem a harmonia da diversidade, a magia da conquista do exercício da inversão e uma periferia que quer ser alegre e sentir-se parte, desfilando ombro a ombro seus elementos culturais, ricos na prática da criatividade. Pronta para influir na busca de outra ordem e de outra agenda social.

O entusiasmo das pessoas que levam essa diversão para a avenida é muito mais importante do que a atenção que é dada a elas. A segurança é o grande tema eleitoral deste ano. Fala-se de unificação das polícias, de penas mais severas para criminosos e de postiças manifestações pela paz. O blá-blá-blá não consegue fugir dos padrões repressores e dogmáticos. A tranqüilidade da multidão no Carnaval da Domingos Olímpio é um exemplo de combate à violência pela não-violência.

O investimento em situações que dão importância aos laços comunitários, multiplica o sentimento de inclusão, cria antídotos para a violência e gera subprodutos culturais e turísticos. Somente causadas por acidente de trânsito e homicídio, foram contabilizadas cerca de oitenta por cento das 83 mortes registradas no carnaval que passou. Essa é a máscara escondida pela concentração de riqueza, é o disfarce que está por trás da violência. Finge-se que é um mal da pobreza, dissimula-se que a raiz do problema está nas folhas secas das árvores caídas dos excluídos. Auto-engano, transferência, nada mais.

O apoio a espetáculos como o carnaval de rua de Fortaleza deveria ser visto também como aporte político ao equilíbrio de uma cidade apartada. Não tem camarotes luxuosos para vender nem a relação custo-benefício é muito clara para viseiras comerciais imediatistas. O resultado não pode ser contabilizado logo no final da festa. É ação para médio e longo prazo, atitude para responsabilidade social pública e privada.

A Fundação de Cultura da Prefeitura tem melhorado a sua compreensão, o Sesc apóia e, com a entrada de recursos que a Coelce liberou através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, pôde-se ver algumas melhorias este ano: proteção de madeira nas laterais da passarela, iluminação branca realçando as cores originais dos figurinos, som ao longo do espaço de desfile e portal de entrada. Desconfio que está na hora de despertarmos. É existencial. E nada melhor do que começar pela valorização daqueles que, apesar de tudo, fazem milagre com orçamento mínimo.