As mais recentes notícias sobre o rio São Francisco abordam os efeitos catastróficos das suas inundações para os grandes negócios e para a vida simples das populações ribeirinhas. As causas dessas enchentes unem mudanças climáticas e a degradação progressiva da bacia hidrográfica desse que é o maior rio totalmente brasileiro.
O rio São Francisco liga os biomas da Caatinga, do Cerrado e da Mata Atlântica, em um percurso de 2.830 km, original e generosamente estendido por cinco estados (MG, BA, PE, SE e AL), e, mais recentemente, com a transposição, contribuindo para o abastecimento de água de mais três unidades da federação (CE, PB e RN). Mantém-se perene, navegável, mas em situação aflitiva.
A primeira vez que me dei conta de que o São Francisco estava sendo condenado à morte foi em Belo Horizonte, durante uma conversa com Téo Azevedo, cantador de cultura popular nascido em Alto Belo. Ele acabara de lançar o álbum “Brasil Terra da Gente” (1979), no qual por meio do martelo mineiro “Velho Chico” (T. Azevedo / C. Neto) chama a atenção para o canoeiro do quanto é rico quem tem tanta água para pescar, mas também para o risco de tudo aquilo se acabar.
Lembrei-me desse momento ao ver, no cinema do Dragão do Mar, o filme Rio de Vozes (2019), documentário de escuta de Andrea Santana e Jean-Pierre Duret, gravado em várias comunidades pesqueiras e agropecuárias, que teimam em florescer às margens do Velho Chico. A diretora cearense e o diretor francês atuam no tempo da conscientização de que, assim como o rio, aquelas pessoas estão tendo suas vidas assoreadas, no sentido do declínio do jeito de viver.
O protagonista do filme é o rio, e as pessoas, sua voz. A câmera está presente como um personagem não declarado que oferece testemunhais ao espectador. Qualidade técnica à parte, nas cenas em grupos, a familiaridade da câmera dá a sensação de que alguém do lugar estava gravando com o celular. Muitas falas são espontâneas, outras estão dão linearidade ao discurso orientado pela necessidade de revelação da existência de uma tomada de consciência social e ambiental.
A unidade de “Rio de Vozes” está na luz nordestina, no processo de padecimento do rio e na percepção de que, mesmo com expectativas enfraquecidas, as populações ribeirinhas sabem o que está se passando e isso é fundamental para o que esperam do destino. Não querem trocar o valor do que têm, para viver nas periferias das grandes cidades, embora reconheçam que o assoreamento das possibilidades de usufruir daquela riqueza é como o das águas do rio que chegam com dificuldade ao mar.
Nessa visita sensível ao cotidiano do São Francisco, enquanto persona, o documentário, que tem fotografia de Jean-Pierre e Tiago Santana, põe na tela das urgências a realidade da precarização do que é grandioso na relação humano e natureza. Pensando sobre a situação em que vive tanta gente integrante do corpo do rio, um entrevistado aduz sobre a incoerência do trabalho com o que vem de fora e vai para fora.
As questões políticas de razões econômicas e sociais, responsáveis pela extenuação da vida na região são atravessadas pela sutileza das falas. O filme não se preocupa em polemizar, em dar voz aos que contribuem para a morte do rio, simplesmente porque seu propósito é ouvir o rio. “Rio de Vozes” é uma crônica coletiva feita por negros, indígenas e mestiços, cuja existência confunde-se com a existência do rio.