Diante do estado de apatia cidadã produzido pela antipolítica dominante no Brasil, dá gosto de ver um espetáculo como o Violivoz, de Chico César (58) e Geraldo Azevedo (77), cuja turnê passou por Fortaleza na quinta-feira passada (21/04). No palco, esses dois grandes nomes da música brasileira de raízes nordestinas propõem pontos de audição capazes de revolver e religar paixões e percepções do público por meio da comunhão de signos da música e do mundo.
A plateia responde de pronto e por inteiro ao toque de cada canção, com entoações, gestos afetuosos e manifestações que refletem a consciência da gravidade do que está acontecendo nas relações pessoais, amorosas, familiares, comunitárias e institucionais do país. A sensação é de atravessamento mútuo de desejos comuns de artistas e público em clima de confraternidade e de cidadania orgânica.
Além do que cada um tem de único, Geraldo Azevedo e Chico César têm vínculos tão estreitos que o repertório da apresentação parece ter sido todo composto por ambos e a partir de uma atemporalidade que se movimenta nas essências das forças criadoras. Este sentido de contemporâneo rompe lindamente com as idiossincrasias da ideologia geracional beneficiadora de grupos que só conseguem respirar em bolhas de mediocridades recalcitrantes.
É certo que cada época e cada lugar têm seu modo criativo e perceptivo, mas a música tem o poder de mexer nos modos de sentir, pensar e agir das pessoas, deslocando acontecimentos e possibilitando que contextos diferentes se comuniquem. No show, a execução instrumental de Bicho de Sete Cabeças (Geraldo Azevedo / Zé Ramalho / Renato Rocha) conecta a poesia de “Não tem ninguém que mereça / Não tem coração que esqueça (…) Cresça e desapareça”, que está na lembrança da plateia, com os versos “Sai do ovo a serpente / Fruto podre do cinismo (…) A bola incendiária está no ar / Fogo nos fascistas”, da música Pedrada (Chico César).
Exatamente 40 anos parecem afastar Bicho de Sete Cabeças (1979) de Pedrada (2019), mas a consubstancialidade autoral presente em Violivoz aproxima o agenciamento dessas composições que liberam intensidades na luta por um estágio de cidadania que permita à população escapar da laminação política e do achatamento da participação social. Uma e outra trazem a simbologia pantanosa da Hidra, a serpente mitológica que só foi derrotada quando teve todas as suas cabeças incineradas.
E o amor? Ah, o amor é tema constante na obra de Chico e Geraldinho, nas suas dimensões vividas e não vividas, visíveis e não visíveis tocadas pela música. Duas décadas aparentam separar Dia Branco (Geraldo Azevedo / Renato Rocha) de Pensar em Você (Chico César), mas quem começou a escutar uma em 1978 e a outra em 1999 sabe o significado de “Eu lhe prometo o sol / Se hoje o sol sair” e “É só pensar em você / Que muda o dia”. Essa interação poética e afetuosa expande-se no palco de Violivoz com Paula e Bebeto (Milton Nascimento / Caetano Veloso), que vem de antes e projeta a liberdade no tempo infinito do amar.
A mulher cearense ganhou um novo adjetivo, e os dicionaristas um novo significado para a atualização do verbete “Arengueira”. Chico César contou que a escolha desse termo para o mantra-refrão da música Palavra Mágica foi inspirada na força feminina aguerrida do Ceará. Esse foi o tom de Violivoz em sua intimidade natural, irmanação sonora e ampliação de flutuações pelos campos dos afetos.