Violão solo de Nonato Luiz
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 16 de Junho de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Alguns músicos são tão identificados com o instrumento que tocam que soa bem assumi-los como sobrenome. Foi assim com Jacob do Bandolim, Nelson Cavaquinho, Dino 7 Cordas, Jackson do Pandeiro e Paulinho da Viola, entre tantos que se constituíram verdadeiras marcas culturais. Há também os músicos que assumem o instrumento como parte da sua própria figura, como é o caso do Bocato e o trombone de vara, Altamiro Carrilho e a flauta transversal, Arthur Moreira Lima e o piano, Paulo Moura e a clarinete, Waldonys, Dominguinhos e Luiz Gonzaga e a sanfona.
Nonato Luiz poderia ser simplesmente Nonato do Violão, mas o sentido de cara-metade com o instrumento caiu-lhe tão ajustado que ele foi parar no grupo dos que coabitam o mesmo corpo. O violão faz parte da sua imagem e das suas pulsões, não há como separar. Essa fundição de formas, em um mesmo vibrante conteúdo, pode ser bem observada no DVD “Nonato Luiz – Estudos, Peças e Arranjos” (RNO, 2011), que o concertista está lançando, com áudio e imagens gravados no final do ano passado, dentro da programação do centenário do Theatro José de Alencar.
A iluminação de Samir Kassouf mostra em volumosa textura de claro e escuro um artista com música em todo o corpo; um corpo do qual faz parte um violão. Na vida pura e simples e na vida cultural, Nonato Luiz veste-se com o manto estético do virtuosismo em sua grandeza de pessoa comum. Economiza pose e deixa esbanjar qualidade interpretativa, levando a arte do violão aos seus mais altos níveis. Em suas mãos, o violão brasileiro conversa em timbre aberto, altura e intensidade aconchegantes e se expressa na língua dos corações.
A pulsação que Nonato imprime ao seu instrumento soma paixão, agilidade, apuro técnico e tino inventivo, com toque sedutor, arrojado e único. O DVD mostra um pouco do muito que ele ouviu desde os primeiros contatos com a música dos cantadores de feiras e dos cantores do rádio em Aroeiras, pequeno povoado de Lavras da Mangabeira (CE), até os clássicos internacionais da música formal. “Em minha discografia, tenho mergulhado de alma inteira em universos musicais fascinantes e tão diversos como o choro; as serenatas brasileiras; a música do nordeste e do Ceará; o cancioneiro de autores magníficos como Luiz Gonzaga, Milton Nascimento e os Beatles”, esclarece na contracapa do DVD.
Do seu repertório de larga abrangência, Nonato Luiz pôs nesse recital gravado em vídeo agradáveis peças e estudos, belas serenatas e preciosas suítes nordestinas à base de seresta, xote e frevo. Interpreta “Saxofone, por que choras?” (Ratinho) com tanta alma, que parece até que esse choro – uma das reminiscências musicais da sua infância – foi feito para violão. O caráter acústico do espetáculo permitiu que ele aproximasse do público extensões do uso do violão com irretocável maestria, como em “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso), quando faz a percussão, a bateria, os passos dos passistas, enfim, uma escola de samba ao violão.
No bis, Nonato resolve entoar um tema que lhe soa familiar e que parece tocar as pessoas, levando-as a retribuírem a distinção com afetuosos aplausos. Presente raro para seus fãs. Tem crédito para isso. “Deve ser diamante o teu coração / Lapidar-te é trabalho de artesão”, entoa esforçado em “Rubi Grená” (Nonato Luiz / Sérgio Natureza). De uma ou outra forma, as palavras melosas que escapam da sua boca deslizam por uma emoção honesta, bem própria dos sentimentos que embalam o seu respeitável fazer artístico. Como documento, tudo isso é sensacional, mas como integrante da parte principal do DVD que a obra de Nonato merece, essa deveria ser uma faixa extra.
Embora realizado com recursos financeiros limitados, o que dá para notar pela baixa qualidade do material da caixa (depois que abre não fecha mais), o DVD poderia ter sido mais bem pensado em termos de edição. Faltou um olhar de produção condizente com a obra gravada. Isso não é questão de grana, mas de sensibilidade na concepção de produtos culturais. Os pronunciamentos feitos durante o espetáculo, por exemplo, poderiam ter sido editados em um bloco à parte do menu, deixando livre a apresentação das canções, o que potencializaria o seu uso. A faixa bônus, “Saudade do Baden” (NL), gravada em estúdio é visualmente mal-executada, inclusive com cortes do artista tocando ora com e ora sem fones de ouvido, em um amadorismo injustificável.
A bem da verdade estou tocando nesses pontos negativos por me sentir frustrado, como admirador do Nonato Luiz e de sua obra. A artistas como ele deveriam ser oferecidas todas as condições de registro de trabalho, como política de difusão cultural do Ceará. Entretanto, não é esse misto de vacilo e omissão que vai tirar o mérito de produções como “Nonato Luiz – Estudos, Peças e Arranjos”. Esse DVD traz um recital de memória dinâmica, com vinte canções em violão limpo, de um artista conhecido pelo seu profissionalismo, que leva com amor e dedicação a expressão mais ativa do violão brasileiro.
Reflexivas, introspectivas ou arrebatadoras, as músicas executadas por Nonato Luiz têm a assinatura de um instrumentista que conseguiu escapar do provincianismo artístico, renovando-se inquieto para além do contexto imediato. Nonato prima por suas raízes, mas ao mesmo tempo procura ser refratário às tentações uniformizadoras do coronelismo territorial da música cearense. O bom é que, com sua intuitividade, tem conseguido uma linguagem musical vultosa, versátil e com particular sonoridade.
Nonato Luiz sempre teve a humildade de ser grato a quem o influenciou, como os violonistas Turíbio Santos e Darcy Villa Verde. No seu primeiro DVD, faz reverências a Villa-Lobos, Baden Powell e Aníbal Sardinha, o Garoto, e convida Adelson Viana para a única participação especial. Cita o Adelson como um mestre e amigo, presente no seu trabalho, no seu som, na sua música. A escolha para esse auxílio luxuoso não poderia ser melhor. Eles fazem duas faixas: “Oração” (Nonato e Adelson) e “Choro Acadêmico” (NL). E a conversa entre sanfona e violão vai longe, transcendendo a beleza. Depois, Nonato presta uma homenagem aos violonistas ibéricos com “Mourisca” (NL), composição marcada por uma ardente musicalidade flamenca.
Em um País com tantos violonistas maravilhosos, o cearense Nonato Luiz tem lugar de destaque na galeria onde estão, além dos nomes que já mencionei, os pernambucanos Heraldo do Monte e João Pernambuco, os cariocas Hélio Delmiro e Guinga, o gaúcho Yamandu Costa, o alagoano Fernando Melo, os paulistas Dilermano Reis, Badi Assad e Luiz Bueno, o mineiro Gilvan de Oliveira, a amazonense Olga Praguer Coelho e Canhoto da Paraíba, dentre outros prodigiosos instrumentistas. Uma galeria que cabe ainda os conterrâneos Francisco Soares, Manassés, Marcílio Homem, Marcos Maia, Tarcísio Sardinha, Zivaldo Maia, Expedito 7 Cordas, Paulo Góes e Cainã Cavalcante.
Com cerca de 600 composições e 30 discos gravados, Nonato Luiz não é só um incansável criador e solista de valsas, minuetos, prelúdios, blues, flamenco, baião, xote, frevo e das sonoridades barrocas que se instalaram no interior do Brasil colonial, ele é um respeitado concertista dos circuitos internacionais, sobretudo o europeu. É um artista de público amplo e diversificado; um descobridor de musicalidades. “Neste DVD volto a retomar essa busca, sempre com a mesma entrega e afinco no interminável processo de criação”, relata no texto da contracapa de “Nonato Luiz – Estudos, Peças e Arranjos”.