Vitalidade juazeirense
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 07 de maio de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Existem lugares que são irrequietos por convicção cultural e histórica. A cidade de Juazeiro do Padre Cícero é um desses cantos vigorosos, transformados em realidade especial por uma mescla intrincada de fatos verídicos e fantásticos. Na figura do seu fundador, intensamente presente em tudo o que há por ali, encontra-se uma boa compreensão de sistema social biológico e pulsante de uma cidade de todos, com sua extraordinária veia inventiva, hospitaleira e empreendedora.

É incrível um lugar assim, mas é desse jeito que Juazeiro funciona. Fiquei muito contente com a calorosa acolhida que recebi no sábado passado (3), quando estive lá para lançar o meu livro “Ciço na guerra dos rebeldes” (Cortez Editora), a convite da livraria Nobel Cariri. Senti a agitação sinérgica das pessoas para que tudo desse certo. A mídia local não mediu esforços, desde a Rádio Centro até a TV Verde Vale, passando pela FM Padre Cícero, pela revista O Povo/Cariri e por blogs de historiadores e pesquisadores.

Os cuidados da equipe da livraria, a agradável surpresa da presença do Museu Móvel, instalado no caminhão da Caravana Padre Cícero 170 Anos, e a generosidade de educadoras e intelectuais locais que se pronunciaram durante o evento demonstram o caráter inquieto da cultura desse precioso lugar. Juazeiro confunde-se com o Padre Cícero por ser o que ele queria que ela fosse: uma cidade rica cultural e economicamente, onde mesmo as pessoas mais simples pudessem se sentir bem.

Tudo isso veio confirmar o espírito dessa cidade-personagem, participante do livro “Ciço”, ficção histórica juvenil para a construção da qual me servi de fatos, pessoas reais, estudos existentes, vivências e possibilidades imaginativas. Os acontecimentos mencionados e as datas citadas no livro são balizas temporais por onde trafegam os enredos da vitalidade juazeirense em suas múltiplas crenças, desejos, expectativas e caminhos seguidos.

Já são tantos os livros publicados com inspiração no mito do Padre Cícero Romão Batista (1844 – 1934) que um a mais poderia até passar despercebido. Mas não, mexeu com eles, vai ter de dizer a que veio. Neste aspecto, houve uma forte empatia com a minha proposta de síntese significativa de ebulição cultural, nas suas perspectivas estéticas, políticas e religiosas, orientada para a juventude. O “Ciço” é um jeito de contar como esse fenômeno teria sido, e isso se dá por diálogos reveladores de pensamentos e atitudes movimentados em versões da história até cair na realidade de todo tempo.

Encontramo-nos na força do estatuto dos valores transbordantes, que estão além da concretude da experiência social, ao que Roland Barthes (1915 – 1980) se referia, no sentido semiológico, como algo ou alguém capaz de captar significações, simplesmente por serem suscetíveis a julgamentos de variados discursos. Para o pensador francês, a definição de um mito não deveria ser feita pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como essa mensagem repercute na vida das pessoas.

A existência aberta do Padre Cícero segue contribuindo para a formação de parte significativa da pulsão cultural do Cariri, do Nordeste e do Brasil profundo. O mito não cabe apenas em convenções de uma época, pois ele está fortemente presente na vida cotidiana de Juazeiro. Embora ele tenha vivido ali, em carne, ossos e atitudes, sua figura continua deslocando-se livremente pela cidade, por meio da dança ambígua do sentido e da forma, o que o torna flexível às mais variadas apropriações. Sobre isso, diz Barthes: “Os homens não mantêm com o mito relações de verdade, mas sim de utilização” (Mitologias, p. 164, 9ª Ed., 1993, Bertrand Brasil, RJ).

Juazeiro foi construída por todos os sotaques nordestinos. Cada pessoa que saía de sua origem para ir ao encontro do Padre Cícero levava um pouco da sua cultura, e quando retornava trazia também um pouco da cultura dos outros, portanto voltava mais rica. Dessas idas e vindas, incontáveis construtores anônimos ergueram esse impactante museu de expressões culturais e econômicas ao ar livre, com dinâmica própria, em local geograficamente estratégico.

A expansão substancial de Juazeiro ainda não afetou rigorosamente o seu centro, o que dá à cidade de Ciço uma boa vantagem comparativa com relação aos lugares que abandonam suas áreas centrais. Isso se deve em muito ao setor de serviços, que chega a 80% da economia do município (Anuário do Ceará 2014/O Povo) e que é a grande tendência de negócios na atualidade. Para aproveitar esse potencial, vale melhorar a democratização da banda larga de internet e fazer o aeroporto internacional.

A conurbação criada pela malha contínua entre Juazeiro, Crato e Barbalha, conhecida como Crajubar, forma um respeitável centro de influência regional, com seus 444 mil habitantes, dos quais 261 mil são de Juazeiro. Juntas, as três cidades contam com diversos hospitais, teatros, museus, centros culturais, faculdades e campi das universidades estadual e federal do Ceará, em uma efervescência ciceropolitana abençoada pelo valor dessa gente que nunca sossega.