Viver e conviver no semiárido
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 19 de Agosto de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A Segunda Conferência Internacional sobre Clima, Sustentabilidade e Desenvolvimento em Regiões Semiáridas (ICID + 18), que está sendo realizada em Fortaleza desde a segunda-feira passada (16) até amanhã (20), tem como base quatro áreas temáticas que tratam de 1) Informações Climáticas; 2) Clima e Desenvolvimento Sustentável; 3) Clima e Governança: Representação, Direitos, Equidade e Justiça; e 4) Processos de Políticas Públicas em Clima. Todas sem dúvida de grande relevância, mas, enquanto sistema estratégico, carentes de uma quinta área, na qual fossem aprofundadas as questões relativas à cultura e à educação. Sem um campo específico para isso, corre-se o risco de educação ambiental virar uma forma de dizer o que o outro deve fazer e a carga de responsabilidade educativa ser jogada novamente em paradidatismos escolares e nas soluções mágicas prometidas pela internet banda larga.
Quando me refiro a uma quinta área, falo do que seria um desejável módulo 5), algo como A Educação dos Sentimentos, onde se pudesse tratar especificamente da complexa relação dialética entre viver e conviver. Esta é uma parte do processo de preservação e desenvolvimento de biomas como a caatinga, que via de regra não está ao alcance dos pesquisadores desenvolvimentistas, dos especialistas em mudanças climáticas, dos cientistas sociais e dos líderes políticos. Sem contar que os limites da relação entre a vida e as formas de realizá-la estão cada vez mais difíceis de serem estabelecidos. No caso das questões climáticas, pode-se dizer que há uma dicotomia entre a crise comum do aquecimento global e o reconhecimento da diversidade cultural das distintas sociedades e o direito de cada uma ter as suas próprias significações.
O processo de assimilação dos problemas ambientais tem tempos culturais variados e soluções que exigem compartilhamento de visões, convenções e ações integradas. Produzir e intensificar conceitos e consensos, respeitando e potencializando características antropológicas, experiências replicáveis e vivências sociais inspiradoras, antes de educação, antes de economia, é um problema de cultura. Todas as sociedades podem contribuir para a sustentabilidade quando são levados em consideração os contrastes peculiares vis-à-vis à pluralidade da maneira de viver e as proposições de convivência reclamadas, estudadas e disseminadas em fóruns necessários e urgentes como a ICID.
As indignações são muitas. É inconcebível que a caatinga, como bioma exclusivamente brasileiro de grande biodiversidade, continue perdendo anualmente cerca de três mil quilômetros quadrados de sua mata nativa com queimadas e desmatamento para a produção de lenha e carvão. No ano passado o Ministério do Meio Ambiente divulgou o resultado do monitoramento feito no semiárido e constatou que só resta à caatinga metade da cobertura vegetal, com tendência à desertificação. E o pior: o Ceará, ao lado da Bahia, forma a dupla campeã de desmatamento. E pior ainda: como se não bastasse a queima de lenha da silvicultura nas pizzarias, na indústria de gesso e olarias, a maior parte dos nossos gravetos de jurema são transformados em carvão para abastecer siderúrgicas de Minas Gerais e do Espírito Santo.
Diante de tamanho absurdo temos alguns alentos com referência à mudança de matriz energética. A expansão de parques eólicos ao longo do litoral cearense é uma delas. Outra é a instalação da usina de energia solar nos Inhamuns. Entretanto, o que ainda prevalece é a força do bronco e do egoísmo social concentrador, reacionários a qualquer combinação de bem-estar coletivo com desenvolvimento, como se comprovou nas tentativas de industrialização de biodiesel à base de semente de mamona. Soluções como reflorestamento de fato e produção sistemática de madeira certificada também estão por serem efetivamente incluídas na gramática dos nossos agentes sócio-econômicos públicos e privados. Não temos ainda uma afinação capaz de romper com o tradicionalismo, de dar agilidade, eficácia e concatenar muito bem a aplicação dos recursos públicos com os resultados de interesses da sociedade.
A realização da ICID, visando combater à desertificação e buscar a superação aos impactos das modificações climáticas no semiárido, força a presença do assunto na pauta geopolítica. Não é sem razão que, preocupada com o cenário de empobrecimento econômico resultante da devastação ambiental, a Organização das Nações Unidas, controlada pelos países mais industrializados, lançou durante o evento a Década da ONU sobre Desertos e de Combate à Desertificação. Aquele número 18 que aparece na marca da conferência quer dizer que já se passaram quase duas décadas da realização da primeira ICID, realizada também em Fortaleza, no ano de 1992. A partir de então a caatinga passou a ser considerada na pauta de algumas convenções das Nações Unidas.
A criação de um campo de debates sobre A Educação dos Sentimentos, voltado, sobretudo, para o viver e o conviver na caatinga, certamente contribuiria para uma melhor apropriação do que tem sido oferecido pela cultura, pela ciência e pela economia, e, principalmente, para a redução dos estereótipos que ocultam a riqueza da biodiversidade desse bioma rejeitado antes de ser devidamente conhecido. A ideia de uma natureza perversa e de uma humanidade carente que vigeu até agora dificulta a troca de conhecimentos e saberes e a fuga das manipulações políticas, embora a sociedade venha matando alguns fantasmas à revelia desses controles. A caatinga tem uma estética natural e cultural inconfundível, mas, com exceção do Banco do Nordeste, que inclusive mantém destacados centros culturais, os organismos de promoção do desenvolvimento da região, tais como Sudene, DNOCS, Chesf e Codevasf não aproveitam devidamente esse potencial.
Assim como se vêm lutando tanto por um Fundo da Caatinga, que se lute também pela criação de um Fórum Permanente de Cultura e Educação para a Convivência no Semiárido; um fórum que possa tratar a questão a partir do viver e que a cada dia 28 de abril, Dia Nacional da Caatinga, expusesse os avanços das novas formas de relação das pessoas com a natureza. Essa quinta área temática deveria ser menos racional e mais associada a valores, virtudes e simbolizações. A racionalidade em demasia provoca desestímulo. O melhor discurso é a representação, o que possibilita que abracemos o tema, que tenhamos a satisfação de nos comprometer com ele. O semiárido, a caatinga, precisam ser vistos com encanto, precisam de uma nova literatura, de jogos com histórias, com humor, com personagens da fauna e da flora, para se enxergar, se valorizar e a sentir o amor próprio que sente e às vezes não percebe.
A ICID é uma iniciativa de busca de soluções objetivas; um instrumento muito bom e muito importante para continuar com essa lacuna de reelaboração do cotidiano, por meio do esforço de compreensão de como se olha, como se busca, como se anda… como se celebra a vida e a morte na caatinga. Não se limitar a acalantar o sonho de apenas conviver com o semiárido, mas inventar condições de identificação que possam significar o viver. As mudanças se dão efetivamente quando assumimos nova consciência do que somos e do que podemos. Tão importante quanto ter instrumentos de mudança é ter a vontade de mudar. E essa vontade depende de sentimentos capazes de imprimir distinção na maravilhosa corrente da vida que se manifesta na biodiversidade da caatinga.