É impressionante como percebo o espectro de Cândido presente na condução de ações do poder público, da esfera privada e até do meio cultural de Fortaleza. Tenho a sensação de que ele circula pela cidade. Sei que ele nasceu na literatura de Voltaire (1694 – 1778) e que, pelo jeito, segue existindo nas pessoas que encontram os argumentos mais inacreditáveis para justificar que tudo está bem, mesmo quando tudo está mal.

Por generosidade de um barão, mesmo sendo bastardo Cândido vivia com a nobreza e reproduzia a versão feudal da bolha dos castelos como representação da superioridade e da bondade humanas. Até que um dia, pego aos beijos com a filha da baronesa, foi escorraçado muralhas afora. Em toda a sua trajetória errante por territórios europeus e sul-americanos, tentou justificar suas desventuras com a ideia de que cada situação deparada era o ‘melhor dos mundos possíveis’.

Depois de sentir de perto os efeitos de discriminações, perseguições, estupros, autos-de-fé, naufrágios, terremotos, fome e doenças contagiosas, Cândido rompe com o modelo mental formatado pelos ensinamentos de Pangloss, o conselheiro do castelo que sempre afirmava serem as coisas do jeito que são, e assume os conselhos repassados pelo seu criador de que a chave do viver é cuidar do próprio jardim, colocando o mundo burguês como referência de ‘melhor dos mundos possíveis’.

O Cândido que observo agindo no cotidiano de Fortaleza parece ser ainda o mesmo de quase três séculos atrás, aquele que ficou satisfeito com a ideia de cada qual cuidar de si, mantendo-se distante do mundo e renunciando às tentativas de cultivar as diferenças. Ele ainda está muito distante do conceito que trabalho de Cidadania Orgânica, por meio do qual procuro enxergar pessoas e grupos que movem seus interesses considerando a natureza e os interesses da humanidade como um todo.

Comunidade do Campo do América, em Fortaleza (Foto: Flávio Paiva)

Acho que vi o Cândido na quinta-feira passada (16), quando a maioria dos vereadores de Fortaleza aprovou a exclusão de duas áreas de proteção ambiental na Regional 3, sob o argumento de que esses trechos não seguiam a linha reta do contorno do Parque Rachel de Queiroz. E fica por isso mesmo, porque o senso comum é o de que o poder público, em sua política anti-ambiental de orientação privada, seria o único responsável pelo apagamento do verde nas cores do mapa da cidade.

Havia também na semana passada um vulto desse personagem expondo razões para a derrubada de 20 hectares de árvores nas imediações do Aeroporto Internacional Pinto Martins, a fim de liberar o espaço para a micareta Fortal. Ele certamente estava também em 2023 quando a Prefeitura de Fortaleza promoveu a modificação da lei que proibia o loteamento e a construção de monstruosos condomínios de luxo dentro da cidade, permitindo graves intervenções no funcionamento do território urbano.

Cândido mostra-se favorável a esse tipo de ocupação hostil ao meio ambiente e à equidade social por uma razão dupla: o fato de os prédios, diferentemente das árvores, ironicamente não balançarem tanto com o vento, e o argumento de que as folhas e flores que caem nos logradouros públicos elevam os gastos com a limpeza urbana. Coisas desse tipo justificariam a substituição da cobertura vegetal por áreas de construção civil. Pensa assim, sem considerar que, desflorestada e com o solo impermeabilizado, a cidade fica mais quente e mais vulnerável a alagamentos.

O licenciamento frouxo para desmatar e cortar árvores em situação de rua e as ações de poda que privilegiam as fiações privadas entre postes da cidade sem calçadas com o mínimo de adequação para pedestres são exemplos da eficácia do poder público municipal em seu desprezo pelo verde e em favor dos especuladores e concentradores de riqueza que exploram a cidade e seus habitantes. Já pensou nisso, Cândido? Você está de passagem ou mora em Fortaleza?

Fonte
Jornal O POVO